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ÚNICOS, JAMAIS SOZINHOS.

Grupo musical The Garifuna Collective retoma as raízes afro-indígenas do povo Garifuna na América Central.


Por FELIPE VIVEIROS*


A América Central e o Caribe são marcados no imaginário popular por praias paradisíacas, rum de ponta e charutos de qualidade. A região é vista com fascínio pelos amantes do reggae jamaicano, da salsa cubana e do reggaeton porto-riquenho, que conquista os ouvidos da juventude latina, até mundial, nos dias de hoje.


A bagagem cultural que carregamos desse subcontinente é, ainda, muito ligada à produção cultural dos países insulares. Pouco se fala da área continental da região, que não só separa os mundos do Oceano Pacífico e do Mar do Caribe, como também oferece uma conexão geográfica — e cultural — entre todas as Américas.


O istmo centro-americano é composto de 80% de população de ascendência indígena, com muitas línguas dos povos originários faladas no dia a dia. Entretanto, de todos os sete países formados no continente apenas um não compartilha uma história em comum: Belize.


Conhecida como "Honduras Britânica", Belize foi a última colônia dos ingleses nas Américas Continentais. O país só conheceu a liberdade em 1981, e mesmo independente ainda mantém ligação com o Reino Unido, tendo como Chefe de Estado quem ocupa o trono na Inglaterra. Contudo, ao contrário do país de origem de Elizabeth II, Belize dispõe de uma característica étnico-social diferenciada, com metade de sua população composta por descendentes de maias e espanhóis. E mais: possuem um número significativo de Garifunas, grupo étnico formado pela miscigenação dos índios caraíbas e aruaques com escravos africanos. Podemos dizer, portanto, que embora a língua oficial de Belize seja o Inglês, o país vive diversidade multilíngue e sabe se expressar como ninguém em yucatec, mopán e ketchi (idiomas maias), espanhol e garifuna.


foto: divulgação


Os garifunas descendem de uma população singular da ilha caribenha de São Vicente, que é hoje o país "São Vicente e Granadinas". Também conhecidos como os "caraíbas negros", os garifunas são descendentes de sobreviventes africanos que naufragaram perto da ilha em dois navios espanhóis que, então, levavam escravos da etnia Mokko — atualmente o povo Ibibio da Nigéria — para a América do Norte. Os sobreviventes encontraram refúgio em terra firme e, pelos 150 anos seguintes, constituíram família com a população caraíba e aruaque que os acolheu. Em meio a disputas coloniais entre França e Inglaterra pelo domínio da ilha, os garifunas lutaram heroicamente, mas diante do poderio estrangeiro, acabaram se exilando em diferentes períodos da história, ao longo da costa de Honduras, Nicarágua, Guatemala e Belize.


Sua língua, de origem indígena aruaque, tem palavras provenientes de idiomas africanos e alguns estrangeirismos do Francês, do Inglês e do Espanhol, o que evidencia a longa história de interação com os diferentes povos coloniais. A língua garifuna é uma tradição oral e não tem uma escrita oficial. Mas, não se engane, é um idioma e não um dialeto. Em 2001, a UNESCO proclamou a língua, a dança e a música garifunas como "Obra-Prima do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade".


Como a importância cultural do povo garifuna é tão grande quanto sua singularidade, o governo de Belize declarou o dia de chegada dos garifunas ao país, 19 de novembro, como feriado nacional. Essa é uma das festividades mais importantes da antiga colônia britânica e inclui encenações do desembarque dos primeiros barcos da etnia no país, em 1802.


Os garifunas estão, hoje, escrevendo sua própria narrativa com base em experiências históricas e culturais. É através da música e das iniciativas de grupos ativistas que a herança cultural única desse povo é preservada. Muitos foram capazes de manter vivas práticas culturais e foram as comunidades de Belize, como o The Garifuna Collective, que assumiram um papel de liderança na manutenção global da cultura garifuna.


fotos: divulgação


A história do The Garifuna Collective remete ao início dos anos 1980, quando o fundador do grupo, Andy Palacio, iniciou uma carreira dedicada à preservação da cultura Garifuna. Palacio criou uma banda com músicos de diferentes gerações e tinha, como maior preocupação, a extinção da língua e cultura garifuna. Afinal, isso já havia ocorrido em países vizinhos, como a Nicarágua. Contra ventos do tempo que pudessem apagar sua própria identidade, o músico belizenho dedicou sua vida ao projeto "O Coletivo Garifuna". Seu intuito foi manter as tradições, e lhes garantir perspectivas de futuro.


O grupo adiciona elementos modernos às formas tradicionais da música, inovando o estilo garifuna e o trazendo para um contexto ainda mais contemporâneo. O álbum Wátina, de Andy Palacio com o The Garifuna Collective, é um dos mais celebrados álbuns de garifuna, ganhou o BBC World Music Award e foi votado pela Amazon como o "Álbum Número 1 de World Music de Todos os Tempos". The Garifuna Collective já se apresentou em mais de 30 países, nos cinco continentes, e suas performances são um retrato da identidade de um povo que relata histórias únicas para serem vivenciadas pela cultura do resto do mundo.


A banda toma seu lugar de voz, com respaldo de uma longa linha de ancestrais, fazendo crescer a identidade cultural dos Garifuna em melodias líricas de chamada e resposta que propõem uma conversa entre gerações e tradições. Os ritmos sobrepostos e a percussão revelam as camadas dançantes da herança do oeste africano, enquanto que os cantos levam o ouvinte a um encontro com os povos indígenas Aruaque e Caraíba. Morto em 2008, Andy Palacio deixou um legado e um grupo de artistas que se apresentam em sua memória, com o compromisso de manter viva a tradição e língua do povo afro-indígena. Contra a ameaça de extinção, a música e carreira de Palacio foram, e continuam sendo, uma campanha que através do The Garifuna Collective, continua ativa e retrata o que significa ser um garifuna.


Para escutar mais dessa "Obra-Prima da Herança Oral e Intangível da Humanidade", escute também o álbum Umalali: the Garifuna Women's Project, uma coleção musical de histórias compostas pelas vozes de mulheres de Belize, Honduras e Guatemala, todas pertencentes a um povo único, mas jamais sozinho.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).



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