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UCRÂNIA E RÚSSIA: IRMÃOS DE NASCIMENTO, PRIMOS DISTANTES.

Enquanto caem as bombas, a música toca e as diferenças entre ucranianos e russos ficam mais claras do que nunca.


Por FELIPE VIVEIROS*


A Rússia alega que a Ucrânia oprime os falantes nativos de russo. Os ucranianos, por sua vez, dizem que estão (re)construindo sua identidade nacional.


Durante séculos, sob o Império Russo e depois a União Soviética, o ucraniano foi estereotipado como “língua de camponeses”. O russo foi, ao longo da História, promovido como o “idioma da cultura”. Embora o russo e o ucraniano compartilhem letras e vocabulário do alfabeto cirílico, são idiomas distintos com apenas 60% de semelhança. Algo como a diferença linguística entre o holandês e o inglês. E não surpreende o porquê.


Embora o apelo sentimental e espiritual dos russos pela Ucrânia derive da ideia de que os dois povos nasceram como um só povo no pequeno reino da “Rússia de Kiev”— no século 9 –, essa “pátria ancestral conjunta” não caminhou tão unida assim. Desde a época da fundação até a conquista pelos mongóis no século 13, a Rússia foi uma federação bem fragmentada. A região de Kiev foi conquistada pela Polônia e Lituânia no início do século 14, e durante “apenas” 400 anos foi governada por esses dois países, o que deixou profunda marca cultural. Durante quatro séculos, a população ortodoxa eslava da Ucrânia desenvolveu uma identidade distinta dos Russos – que permaneciam sob o domínio mongol e moscovita. Não é coincidência que a língua ucraniana seja tão diferente da russa.


É claro que, depois décadas de dominação do Império Russo e incorporação à União Soviética, muitos ucranianos, hoje, falam russo e ucraniano de modo intercambiável. A proximidade cultural não foi escolha. Foi obrigação. O Império Russo perseguiu sistematicamente as expressões da cultura ucraniana e fez contínuas tentativas de suprimir a língua ucraniana. Não é à toa que, quando o Império Russo entrou em colapso depois das revoluções socialistas de 1917, a primeira ação que os ucranianos fizeram foi declarar um estado próprio. Foram anos de guerra – e quase independência – mas, a Ucrânia foi, mais uma vez, dividida entre a Rússia e a Polônia. E a experiência com os soviéticos deixou traumas.


A identidade ucraniana foi destroçada e reprimida na Ucrânia soviética. A “aversão” ficou ainda mais forte com o “Holodomor”, a grande fome causada pela política agrícola de Stalin, entre 1932 e 1933, que matou quase cinco milhões de ucranianos. Com rejeição de ajuda externa, confisco de alimentos domésticos e restrição do movimento populacional, os soviéticos fizeram um estratégico genocídio do povo ucraniano.


Foi só com o colapso da União Soviética, em 1991, que a Ucrânia conquistou a condição de Estado independente. Acontece que o povo ucraniano já lutava – e resistia – por sua autodeterminação há muito tempo.


A legislação, não por orgulho nacional, mas por resistência, prioriza o ucraniano na vida pública. Por lei, toda a mídia impressa deve publicar em ucraniano. Não há vingança, há forte sentimento de justiça. O russo não é proibido, só é necessário que as publicações dos jornais emitam versões iguais em ucraniano. E não para por aí. Em 2016, a legislação determinou que 35% da música na rádio deve ser em ucraniano. A lei aumentou a demanda popular por música pop nacional e fez com que os ucranianos fizessem da música poderosa ferramenta de autodeterminação. Hoje, são as bandas e os artistas ucranianos que são as trilhas sonoras dos protestos à invasão russa. A música na Ucrânia tem ajudado o país a afirmar sua própria identidade cultural, relembrar os séculos de história separados e a repressão vivida na mão dos seus irmãos de nascimento que hoje, já são primos distantes.


Os acordes políticos, tanto quanto os acordos políticos, têm sido uma ferramenta para auxiliar no rebranding nacional e projetar uma imagem externa “não russificada” para o resto do mundo. Uma disputa cultural está em curso. O prêmio? O direito de definir a identidade do país. Olhar para a Ucrânia e enxergar a Rússia é uma leitura perigosa do passado. O que faz a Rússia, hoje, é redefinir fronteiras e reescrever História. A invasão da Ucrânia impulsiona, ainda mais, a latente aversão dos ucranianos à Rússia. Enquanto caem as bombas, a música toca e as diferenças entre os ucranianos e os russos ficam mais claras do que nunca.


PARA OUVIR A GUERRA: O LIVRE SOM DA UCRÂNIA.


Go_A

Banda de electro-folk criada em 2012, Go_A combina música eletrônica moderna com elementos étnicos da cultura ucraniana. O nome do grupo significa “retorno às raízes”, uma combinação da palavra inglesa “Go” com a letra grega “Alpha”, que simboliza o começo de tudo. O conjunto ganhou notoriedade no Leste Europeu pelo single Vesnianka (Веснянка), que venceu a competição nacional The Best Track in Ukraine em 2015. Na Eurovision 2021 apresentaram a música Shum, que levou o 5º lugar entre os 41 países europeus.



Okean Elzy

Uma das bandas mais populares, carregadas de tom político e comercialmente bem sucedidas do país é a Okean Elzy, formada em 1994 na cidade de Lviv pelo frontman Svyatoslav Vakarchuk. Muitos críticos reconhecem Okean Elzy como a melhor banda de rock das 15 repúblicas da antiga União Soviética. Com letras profundas e estilo musical único, o grupo quebrou a barreira etno-linguística ao combinar sonoridade europeia, melodias eslavas e poesia de protesto ucraniana.



Kozak System

Grupo ucraniano que, com frequência, representa seu país em festivais de música europeus e mundiais, Kozak System foi fundado em 2012. A música da banda é uma combinação de rock, punk e ska, seus shows são famosos por apresentarem interações espontâneas com o público, danças e cenas improvisadas de palco. Além de promover a herança cultural e musical ucraniana, a banda representa independência e liberdade, e é a mais pedida para apoiar os soldados e civis ucranianos na linha de frente.



Joryj Kłoc

Joryj Kłoc é um conjunto de música etno-ucraniana formado na cidade de Lviv, em 2008. O nome da banda é derivado de um jargão usado pelos kobzars – espécie de bardos ucranianos itinerantes. Em seu dialeto lírico secreto, a palavra "joryj" significa ao mesmo tempo "respeitoso", "louco" e "obcecado", enquanto "kłoc" remete a "muito", "pedaço" e “homem". Na sinergia linguística, o grupo compõe em ucraniano no alfabeto latino e combina rock and roll com temas étnicos, fazendo uso de instrumentos musicais tradicionais da região dos Cárpatos.



Hych Orchestra

Banda ucraniana de Lviv, Hych Orchestra toca música de maneira suave e extravagante. Seus membros cantam versos de poetas ucranianos, como Pavlo Tychyna e Volodymyr Sosiura, e (re)criam composições que retratam, de maneira experimental, a arte popular do país. O nome "Hych", de acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Ucraniana, é emprestado das línguas túrquicas e significa "absolutamente não".


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidadede Groningen (Holanda).

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