Filme do Afeganistão alerta sobre o Talibã. Em terra de repressão, o respeito só floresce quando nasce homem.
Por FELIPE VIVEIROS*
Durante muito tempo, o cinema tem proporcionado reflexões sobre “o que significa ser humano”. No coração do centro-sul da Ásia, diretores da História deram início a um longa-metragem de mais de 5.000 anos. Inspirados pelo Irã, pela Índia e, até mesmo, pela Grécia, seu roteiro foi escrito pelos Imperadores Mongóis e ensaiado pelo Mundo. Entre desertos e montanhas, cineastas da Humanidade colocaram ambições imperiais para adormecer, demonstraram resistência e sofreram como uma série de retalhos em seu trabalho. Com edição e pós-produção indesejada, seu elenco e set permanecem em disputa. A locação? Afeganistão.
As fronteiras da “terra dos afegãos” – como conhecemos hoje – não foram estabelecidas pelos que habitavam a terra. Fruto da rivalidade entre o Império Britânico e a Rússia Czarista no século 19, o país, localizado em um ponto estratégico que liga o Oriente Médio ao subcontinente indiano, tornou-se Estado tampão no grande jogo entre os impérios. Peão em lutas por ideologia política e influência comercial, o Afeganistão sofreu com os efeitos da Guerra Civil no século 20, exacerbados pela invasão e ocupação militar da União Soviética, de 1979 a 1989. Entre cavalos, bispos e torres caía o rei. Em 1996 um movimento de estudantes religiosos, os Talibãs, levantou-se contra os partidos governantes e estabeleceu um regime teocrático. Claro, aproveitaram-se da teocracia de seu próprio regime.
O cinema proporciona reflexões sobre “o que significa ser humano”. Os Talibãs pararam de maneira abrupta com o cinema. Fizeram história apagando História, eram os novos diretores e roteiristas do destino do país. A produção e a exibição de filmes foram proibidas. Com políticas restritivas, a maioria dos atores e cineastas de destaque do Afeganistão fugiu do país. Não porque esses profissionais não conseguiam fazer mais filmes, mas porque não conseguiam ser humanos. Já não podiam juntar os retalhos da vida em seu trabalho. Com a captura de Cabul, as autoridades Talibãs fecharam as escolas para meninas e forçaram a população feminina a desistir de seus empregos. Não podiam estudar, não podiam trabalhar. Não existiam. Sanções severas aplicavam-se às mulheres que não estavam cobertas da cabeças aos pés, ou que eram encontradas desacompanhadas de seus maridos. Na contramão de ferro do fundamentalismo, surge para o debate o drama afegão Osama (2003).
foto: divulgação
O filme foi o primeiro rodado no Afeganistão, desde que os extremistas chegaram ao poder e proibiram o cinema, em 1996. A produção ganhou o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e teve recepção calorosa no Festival de Cannes. Embora não seja otimista sobre o futuro das mulheres afegãs, a obra coloca o espectador em estado de alerta. Cerca de 18 anos antes da nova tomada, no ano de 2021, Osama deixa claro que os remanescentes fundamentalistas continuarão a ameaçar a estabilidade. Escrito e dirigido por Siddiq Barmak, o filme começa com uma epígrafe de Nelson Mandela: ''Eu posso perdoar, mas não posso esquecer''.
A cenas de abertura captam a repressão violenta em manifestação pelo direito de trabalho das mulheres em Cabul. Uma jovem observa, pela fresta de uma porta, como soldados talibãs dispersam com mangueiras de alta pressão d’água, tiros e lança-granadas a multidão vestida de burca. A protagonista, ainda pré-adolescente, vive em “uma casa sem homem”. A mãe é viúva e perdeu o marido na Guerra de Cabul. Sob as regras do Talibã, as mulheres não devem aceitar empregos ou sair sem um acompanhante masculino. A menina, a mãe e a avó estão condenadas a morrer de fome, a menos que haja um homem na família. "Quem me dera que Deus não tivesse criado as mulheres", diz a avó que sugere que a garota corte o cabelo, se comporte como homem e encontre um trabalho. A dor do Afeganistão se desfaz em poesia. Após a “metamorfose”, as tranças da jovem são plantadas em um vaso de flores. Em terra de repressão, o respeito só floresce se nasce menino.
A jovem não é heroína por opção. Um conhecido do pai concorda em deixar a menina trabalhar em sua loja, desde que vá à mesquita para rezar com os homens da comunidade. A adolescente comete erros de etiqueta religiosa e fica ainda mais assustada. Ela não escolheu resiliência ou sobrevivência. Seu rosto mostra o medo reprimido, é a coragem de ser vulnerável. Não demora muito para que seja arrancada de seu trabalho e matriculada pelos Talibãs em uma escola e centro de treinamento de táticas militares. Um mulá idoso ensina aos meninos – e futuros soldados – o ritual de lavar suas partes íntimas. Os garotos questionam sua masculinidade. Ela é salva por um rapaz que diz aos outros que seu nome é “Osama”. A menina é roubada de sua infância e também de sua feminilidade. O espectador vive e experimenta a justiça arbitrária do Talibã, através dos olhos de uma pré-adolescente de 12 anos.
foto: divulgação
A jovem é a única pessoa no filme chamada pelo nome. Os nomes reais de “Osama”, de sua mãe e de sua avó não são mencionados. O longa é astuto. Os protagonistas do filme, são os figurantes da realidade. A perda de identidade nacional é a perda de identidade pessoal dos afegãos. Sua essência cultural é, sob o regime do Talibã, um desespero silencioso. Para muitos no Ocidente, o Afeganistão está limitado à temporada final da série norte-americana Homeland e notícias televisivas da “Guerra ao Terror”. É raro estarmos expostos – e dispostos – a escutar histórias sobre o Afeganistão, contadas por quem vive ou viveu no país.
O regime do Talibã entrou em colapso em dezembro de 2001, depois de uma campanha militar sustentada e dominada pelos EUA. As forças anti-Talibã concordaram com um período de liderança transitória e uma administração que levaria à nova constituição e ao estabelecimento de um governo democraticamente eleito. Solução? O longa-metragem de mais de 5.000 anos já resistiu a direção de Alexandre, o Grande; Gengis Khan; União Soviética, Estados Unidos; e OTAN. Se o elenco e o set permanecem em disputa, hoje, é por que foram abandonados pelas equipes durante os muitos anos das filmagens.
Em 2021, com o retorno do Talibã ao poder, surge a ameaça de mais um período de “brecha cultural” no Afeganistão. Se o segundo reinado Talibã se assemelhar ao primeiro, filmes como Osama vão permanecer apenas na imaginação até que o regime caia. É importante distinguir edição islâmica de pós-produção extremista. O filme não para até que as telas iluminem as almas dos espectadores e ofereçam uma alternativa à ficção da realidade.
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