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REMIX DA VIDA

DJ Michael Brün mostra, com o pioneirismo da música eletrônica, que o mundo é quem precisa do Haiti.


Por FELIPE VIVEIROS*


Conhecemos o Haiti. São claras as imagens de violência, pobreza, corrupção, falta de estrutura e educação. A nação caribenha é destaque nos noticiários que repetem um ciclo sem fim de revoltas políticas e desastres, seus habitantes são aqueles que sempre precisam de ajuda. Atenção! Não seríamos nós os que carecem de luz?


Em 2018, o então presidente dos EUA, Donald Trump, chamou o Haiti de “país de m*rda”. Como sempre, está mal informado. O Haiti é icônico. Primeira nação do Caribe a conquistar a independência, em 1804. Primeira república negra do mundo que conseguiu, com uma rebelião de escravos, libertação do domínio colonial. Primeiro país do hemisfério ocidental a abolir a escravidão. Quem disse America First está enganado, é Haiti First. O pioneiro das Américas, o impulsor das diversas transformações sociais no continente ao longo dos últimos 200 anos.


Vamos posicionar o país no contexto histórico e cultural adequado. Quando colocamos as conquistas de um povo na linha do tempo, entendemos o seu significado. Não se trata de ser político, mas de mostrar às pessoas que seu valor está ligado à maneira como você fala de si e à maneira como as pessoas falam de você. A mensagem do mundo não sincroniza com o que o Haiti representa. A música chegou para fazer essa ponte com o DJ e sensação do país: Michael Brün.


foto: divulgação


Direto da capital Porto Príncipe, o jovem de 28 anos nasceu em um lugar onde as festas se estendem do pôr-do-sol até o nascer do sol. Sua família, pai haitiano e mãe guianesa, sempre gostou de música e suas influências se estendem desde o estilo nacional rara até disco e synth pop. O artista percebeu que, embora o Haiti não tivesse uma cena de música eletrônica, era uma plataforma internacional sem barreiras de idioma ou etnia. Aos 16 anos assumiu a produção de DJ como hobby, depois de ganhar uma bolsa de estudos completa para frequentar uma escola militar nos EUA. Mais tarde, passou a cursar o preparatório de Medicina no Davidson College, na Carolina do Norte.


Enquanto aprimorava sua formação educacional, seu hobby decolava. O DJ haitiano tinha vida dupla. Durante o dia, era um dos melhores alunos do preparatório de Medicina da sua universidade. À noite, carregava singles para o SoundCloud e tocava em festas. Não demorou muito para que, aos 19 anos, se apresentasse no seu primeiro festival para uma multidão de 10.000 pessoas. Michael Brün não planejava se tornar um DJ, pretendia se tornar um pediatra e retribuir as conquistas do seu país natal como médico. O destino mostrou ao jovem uma maneira muito diferente de contribuir: fazer do mundo o Haiti, levando de ouvido a ouvido suas exuberantes canções de música eletrônica.


O músico abraçou a responsabilidade, desistiu da faculdade e começou a tocar em grandes eventos como o Coachella e o Electric Daisy Carnival, o maior festival de música eletrônica da América do Norte. Brün, assim como o Haiti, é vanguardista e se tornou um dos primeiros artistas de música eletrônica no país. O jovem é, hoje, o DJ mais famoso de sua terra. Após anos de trabalho e experimentação, conquistou o seu espaço como uma das figuras mais conceituadas da música eletrônica. Em 2013 seu EP solo Gravity alcançou a posição nº 2 no site de música eletrônica Beatport, ficando para trás apenas pelo conhecido DJ sueco Avicii. Revistas como a Billboard, DJ Mag e Rolling Stone, pouco a pouco se interessavam pelo Haiti, que mostrava sua diversidade de influências musicais e fornecia uma plataforma para os caribenhos na indústria.



foto: divulgação


Michael não trouxe a música haitiana para as pistas de dança. Quebrou a barreira do som e os estereótipos que rondam o seu país, desafiou o arquétipo dos astros da música eletrônica, predominantemente brancos. O DJ descobriu como incorporar o orgulho de seu país e ajudar os outros a se orgulharem de sua origem. Não há fronteiras para aqueles que conhecem suas próprias raízes. E são muitas raízes. O Haiti integra uma variedade de culturas, sejam elas os indígenas taínos, os descendentes da África Ocidental ou a diáspora na América Latina e nos EUA. A música haitiana contemporânea é a união desses povos, um DJ que escuta pop, toca em uma banda de funk e mistura raízes afro-caribenhas com blues norte-americano. O haitiano é um cantor de soul, um bailarino moderno dos estilos musicais do passado que, não egoísta, traz o mundo todo aos palcos.


O Haiti é meca musical que colocou identidade única em cada gênero que desembarcou às margens de sua terra. O estilo rara tem herança vodu; o konpa é merengue moderno haitiano; o mizik rasin ginga na confluência do reggae, do rock e do funk. É por isso que o DJ Michael Brün também é um pesquisador. Estuda suas canções com cuidado para que elas reflitam os ritmos que fazem soar a própria História do Haiti. A música eletrônica, embora moderna e incompreensível para os mais eruditos, funciona como um livro. É a plataforma impressa no som que faz com que as gerações futuras sintam-se conectadas pela batida de seus ancestrais.


Em tempos de desprezo e xenofobia, é o Haiti quem dita o ritmo nos EUA. As políticas restritivas migratórias já não podem contar o país, que hoje reverbera nas caixas de som dos supermercados, shoppings e restaurantes norte-americanos. Inspirada nas festas de rua haitianas, a turnê Bayo de Michael Brün permite que a nação caribenha controle sua própria narrativa. Bayo significa "ceder" em crioulo haitiano. As pessoas enxergam o Haiti como um país necessitado e se esquecem de que a nação caribenha tem muito a oferecer. O álbum de estreia Lokal também mostra isso. Com nova faixas, o trabalho é uma coleção de sons haitianos contemporâneos como konpa e rara, ao lado de influências do afro-pop e reggaeton. As canções são um passeio pela história do som e pela geografia da música. Escutar o álbum é ver o Haiti, acompanhar de perto sua criatividade e contribuição para o mundo.


A razão pela qual Michael Brün queria se tornar médico era para retribuir à comunidade que lhe deu espaço e voz. A música também lhe permitiu fazer isso, só que em escala maior – e tom maior. O pulso e a pressão dos seus pacientes agora podem ser medidos pelas batidas por minuto de seus beats. O set de DJ é a mesa de operações que disseca, com criatividade, o Haiti que muitos ainda não conhecem. O diagnóstico ressoa em todo o mundo e o resultado dos exames são excelentes, assim como a vida noturna de Porto Príncipe. O melhor remédio? As batidas frenéticas e as explosões de energia positiva. A música haitiana cura e salva no remix da vida, uma festa que cria um futuro maior do que qualquer imagem negativa de um país.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).


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