O filme libanês “Cafarnaum” inova ao questionar no pó das ruas a lágrima seca do caos do mundo, a impossibilidade das vidas.
Por FELIPE VIVEIROS*
A câmera sobrevoa as favelas de Beirute. Não se vê o Mar Mediterrâneo ou o glamour da chamada “Paris do Oriente Médio”. Entre prédios dilapidados e crianças brincando com sucata, o cinema árabe, nada tímido, mostra o outro lado da capital libanesa com o filme Cafarnaum (2018).
A responsabilidade da produção começa com o título. O nome do filme deriva do antigo vilarejo israelense de Cafarnaum, lugar onde Jesus conheceu cinco de seus apóstolos e realizou muitos de seus milagres. O termo tornou-se o homônimo de “caos” e "acúmulo desordenado de objetos”. Em uma crise de identidade, sem documentos ou milagres, as modernas cafarnaums do mundo têm crianças como parte desse acúmulo desordenado. Uma ironia linguística e histórica.
O refugiado sírio Zain Al Rafeea é o ator que interpreta o protagonista Zain, menino de supostamente 12 anos que vive nas favelas do Líbano. Zain é um competente solucionador de problemas. Seus traços de adulto são moldados pelas dificuldades únicas de uma não-criança. Com olhos jovens e gestos de homem experiente, o menino já não se entende no tempo, mas no contratempo dos anos que (nunca) viveu. O filme mostra que a inocência da infância é algo que só uma infância inocente poderia ter.
foto: divulgação
Na desordem poética de Beirute a produção tem como pilar uma prosa social. O garoto vive com os pais e diversos irmãos em um apartamento caótico. Os membros da família moem drogas e as crianças trabalham como traficantes na rua, negociando uma infância clandestina. Com pais que nunca registraram a certidão de nascimento de um filho, Zain não consegue impedir que sua irmã de 11 anos seja vendida pela família a um comerciante. O menino sai de casa em fuga, um super-homem – ainda criança – em voo. É acolhido por Rahil, uma faxineira etíope em situação ilegal, e se torna babá de sua filha de um ano de idade. Quando a imigrante sem documentos é capturada pela polícia, o menino volta para as ruas, levando o bebê com ele e forçado a tomar medidas desesperadas por sobrevivência.
As cenas do menino e do bebê nas ruas transitam entre sem paixão e compaixão e revelam, pelo raciocínio inverso, o que significa a palavra humanidade. E tudo é inverso. A diretora Nadine Labaki usa um julgamento no tribunal para estruturar o filme em flashbacks. Zain já cumprindo uma pena de cinco anos por esfaqueamento, processa seus pais pelo "crime" de lhe dar a vida. Os filmes hollywoodianos celebram quase que inerentemente a vida. O filme libanês inova ao discutir impossibilidade das vidas que foram concedidas. O longa – não por acaso – foi ovacionado de pé por 15 minutos e laureado com o Prêmio do Júri, uma das honrarias do Festival de Cannes. Conquistou também uma indicação ao Globo de Ouro, de Melhor Filme em Língua Estrangeira, e foi nomeado para a mesma categoria no Oscar em 2019.
foto: divulgação
Nadine Labaki começou a trabalhar no filme com seu marido, compositor e músico Khaled Mouzanar, construindo um projeto de reportagem. Ninguém manifestou interesse em financiar a produção e o casal hipotecou a casa para trazer a história para as salas cinema, levar ao mundo a realidade de seu país. A música que permeia o filme é de Mouzanar, que pinta a tela com som e perfeita harmonia junto ao tom emocional do longa. Antes do sucesso de Cafarnaum, Labaki já era uma das cineastas mais célebres do Oriente Médio. A diretora se apaixonou pelo cinema quando ainda criança, durante a Guerra Civil Libanesa que assolou o país entre 1975-1990. O conflito, opondo diferentes grupos político-religiosos, destruiu o Líbano e para fugir da violência, diversos personagens da vida real se refugiaram nas histórias do cinema.
O realismo da diretora Labaki, constrói uma trama na qual o pó das ruas são as lágrimas secas do caos do mundo. As imagens do filme não são distopias. São um reflexo da Beirute hoje. Nos últimos anos, o Líbano acolheu mais de um milhão de refugiados que escaparam da guerra na vizinha Síria. A visão de centenas de crianças mendigando nas ruas se tornou o “novo normal”. O país, nos últimos anos, experimentou um colapso financeiro e econômico soterrado por uma estrutura de governança incapaz de empreender reformas. As tensões sociais aumentam à medida que a economia desce em espiral. Com a libra libanesa desvalorizada em mais de 80%, a inflação excedendo 140% e o desemprego em 40%, a classe média está se tornando pobre e a pobreza extremamente miserável. Com a esmagadora maioria dos sírios representando mais de 20% da população libanesa, sua presença foi vista como ameaça à governança e à estabilidade do país. O relacionamento tenso do Líbano com a Síria durante muitas décadas também não ajudou, e a crise piorou as percepções negativas.
O menino não é um mártir passivo de sua situação. Embora viva em “cafarnaum”, a criança – assim como o termo “cafarnaum” de hoje – desconhece o milagre e vive o caos. Zain não é nada imaculado. É a infância furiosa, suada em seu cansaço e violenta com a negligência. O jovem jamais pede para morrer. Reivindica o direito de nunca ter nascido. Espernear de raiva e insultar os pais mostram que a pureza vive o pecado dos que não são cuidados no glamour da Paris do Oriente Médio. Zain não processa os pais, processa todo o sistema, revela a indignação do viver por viver. Se Cafarnaum parece um documentário é porque muito dele não é ficção. Para quem assiste, o filme dura duas horas. Para os que estão sendo punidos pelo crime da vida, as ruas do mundo se estendem pelas próximas gerações.
Texto excepcional. Mostra, comentando o filme, uma realidade do Líbano muitas vezes ignorada ou desconhecida. Para descendentes de avós libaneses, como eu, é triste constatar os problemas do país árabe. No Brasil há 12 milhões de árabes e descendentes, a maioria do Líbano. O texto com certeza sensibiliza toda essa comunidade.