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O VERDADEIRO SABOR DO CÉREBRO

Gênero musical Bongo Flava, da Tanzânia, faz arder a pimenta social no suave e bruto molho da vida.


Por FELIPE VIVEIROS*


Há um lugar no planeta Terra onde os primeiros vestígios de ascendência humana foram encontrados. Um ponto de confluência da Humanidade que presenciou não só a existência do primeiro ser humano, como a resistência de seus descendentes. Invasores portugueses, alemães e britânicos diriam que vieram do Velho Continente em missões civilizatórias, mas mal sabiam que a civilização já acontecia na África há quase dois milhões de anos. Escutemos o mundo pela experiente voz de quem testemunhou a evolução humana, deixando o sítio paleontológico de Olduvai Gorge para alcançar o cume do Monte Kilimanjaro: a Tanzânia.


O domínio europeu começou na Tanzânia durante o final do século 19, quando a Alemanha – no que ficou conhecido como “Partilha da África” – criou a África Oriental Alemã. O período de repressão foi seguido pelo domínio britânico, após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, fazendo com que a população não só falasse o suaíli – língua africana de origem bantu e árabe – como também o inglês. A independência foi conquistada no começo dos anos 1960 e, desde então, o governo e instituições nacionais têm promovido seu uso através da literatura, do cinema e, principalmente, da música. Um país, para conquistar sua independência política, precisa soar independente. No século 21 a emancipação chegou com um dos símbolos mais fortes da Tanzânia moderna, o gênero musical bongo flava.


Fenômeno de origem local e influência ocidental, bongo flava é derivado do hip-hop norte-americano e dos estilos tradicionais tanzanianos como o taarab (de influência árabe e indiana) e o dansi (jazz suaíli). O estilo, que surgiu no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, coincidiu com a virada mais significativa da história pós-colonial tanzaniana: a transição de um Estado socialista de partido único para um regime de governo liberal e multipartidário. Referindo-se à perspicácia necessária para sobreviver nas cidades tanzanianas do pós-transição, bongo é gíria suaíli para "cérebro". Flava é a versão africanizada da palavra flavour, "sabor" em inglês. Com inteligência de sabores, bongo flava faz arder a pimenta crítica do político-social no suave e bruto molho da vida, como mostra o cantor, compositor e dançarino Alikiba.


foto: divulgação


Uma das maiores estrelas da África contemporânea, Alikiba é tão influente que o presidente da Tanzânia na época, Jakaya Mrisho Kikwete, o homenageou por sua “inestimável contribuição à música, às artes e à cultura tanzanianas”. Algo erudito? Jamais. Sua música é o rebolado, a ginga, o swing. O artista mostra que embora bongo flava esteja relacionado ao hip-hop norte-americano, distingue-se de seu homólogo ocidental. Seu som, com raízes no rap e R&B dos Estados Unidos, volta a África longe das embarcações e nas mãos dos africanos em viagem pelo próprio continente. Oálbum de estreia Cinderella, quebrou recorde como o álbum mais vendido nos países da África Oriental, em 2008. Uma perspectivava sualícentrista do que é ser cidadão do mundo.


Bongo flava é uma janela aberta para o individual e o coletivo. Na verdade nunca estiveram tão juntos. O gênero é uma lente através da qual podemos compreender melhor as esperanças, os sonhos, as queixas da juventude na Tanzânia. Seus compositores, dançarinos e intérpretes são conhecidos pelo termo suaíli wasela, “marinheiros urbanos”. Nas duras ondas da cidade a ressaca é puro concreto. A cidadania e a dignidade também. Quem espera apenas rap sobre pesados temas políticos, se engana. A política do gênero está em sua versatilidade, em letras sobre festas, amizade e romance. Bongo flava não é sobre a dureza da vida. É sobre o desafio surreal que é deixar de viver, desfrutar da música e do escapismo que ela promove como mostra o rei da selva de pedra, Diamond Platnumz.


foto: divulgação


Conhecido também pelo apelido de Simba – que não é propriedade intelectual da Disney, mas significa “leão” em suaíli – Diamond Platnumz é um dos mais influentes músicos africanos. Com um alcance combinado de milhões de pessoas nas plataformas de streaming e mídias sociais, o artista é aplaudido em toda a África Oriental e Central. Nascido e criado nos guetos da capital Dar es Salaam, Platnumz é um dos bem-sucedidos astros da história da música da África Oriental e, também, o primeiro artista africano a alcançar um total de 900 milhões de visualizações no YouTube. Sim, o equivalente a cerca de 15 vezes a população da Tanzânia. O segredo? Diamond Platnumz incorporou mais traduções em inglês à música que, normalmente, é gravada em suaíli. Seu álbum A Boy From Tandale, de 2018, é como escutar um Usher de influência taarab e dansi, um Ne-Yo de Dar es Salaam, um Michael Jackson subsaariano. O cantor redefine o gênero e faz vibrar o cenário musical do país, assim como sua discípula e mais nova sensação de bongo flava, Zuchu.


foto: divulgação


A jovem artista foi manchete na mídia da Tanzânia quando assinou um contrato com a gravadora de Diamond Platnumz, uma das principais da África Oriental. O estilo de composição da cantora abandona a forma contemporânea de bongo flava – que é seguida pela maioria dos músicos. Com Zuchu o cérebro é outro e os sabores também. A astúcia da artista está em fazer emergir os estilos tanzanianos e ocidentais para trazer ao debate: Teria a globalização e a influência ocidental gerado mudança no gosto dos ouvintes africanos, e isso implicaria em uma dominação cultural? Seu EP de estreia I am Zuchu tem a resposta. Bongo flava é mestiço por si só. É o taarab vestido de hip-hop, é o dansi com ritmo de R&B, o inglês de sotaque suaíli. A Tanzânia só é independente quando confiante de que está pronta para transcender os limites da África Oriental.


Há um lugar no planeta Terra onde os primeiros vestígios de ascendência humana foram encontrados. A Tanzânia presenciou não só a existência do primeiro ser humano, como o acompanhou de perto por dois milhões de anos. Hoje é o bongo flava que, nas esquinas do mundo, escala o Monte Kilimanjaro. O artistas do gênero são fruto da cultura global e extremamente tanzanianos. Sua música liga o passado e o futuro do país. O gênero acende debates sobre a influência pós-colonial do Ocidente nos Estados africanos. Tradicionalistas podem entender a adoção da cultura ocidental como um abandono de sua herança. Alikiba, Diamond Platnumz e Zuchu acreditam no contrário. A individualidade dos africanos é coletiva. Os tanzanianos fazem aflorar os melhores aspectos da cultura ocidental em próprias tradições musicais e de dança. A expressão máxima da confiança pós-colonial é a inteligência de sabores. Bongo flava leva, também ao Ocidente, o verdadeiro sabor do cérebro.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).




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