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O TRIÂNGULO DA MÚSICA

Cantor e compositor Mishka revela o verdadeiro mistério das Bermudas, onde a música aparece em seus mais variados estilos e cores.


Por FELIPE VIVEIROS*


Quando ouvimos as palavras "América do Norte" é quase inevitável pensar no continente como um único país: aquele que todo o mundo vê, ouve, lê e conhece. É por isso que nosso cérebro, mesmo com tempo para pensar em outras opções de "América do Norte", foi rápido em reconhecer o que nos foi mais exposto até agora: os EUA. Não é culpa sua. Faz parte da geopolítica cultural a maneira como os mesmos países e grupos são representados, na arte e na mídia, moldando a forma pela qual enxergamos o outro. Esse é um processo inconsciente que define as culturas que são "exóticas" ou próximas a nós. O estranho só é estranho porque ainda não é conhecido...


A América do Norte é composta por três países independentes: EUA, Canadá e México. Não podemos esquecer dos territórios de domínio europeu — mas de cultura própria — como a Groenlândia, já abordada aqui na Cultura do Resto do Mundo. Faltaria mais algum lugar? Sim! A estrela deste texto, a pouco vista, pouco ouvida, pouco lida, pouco conhecida e muito temida: Bermudas. Contra a corrente de toda nossa geopolítica cultural, talvez o maior equívoco sobre esse interessante e misterioso lugar seja o seu pertencimento ao Caribe, quando na verdade, seu território está muito mais perto da Carolina do Norte, nos EUA, do que da Jamaica.


É absolutamente normal que você nunca tenha ouvido nada desta região, além das lendas sobre o triângulo no qual desaparecem navios e aviões. As Bermudas são um território britânico no oeste do Oceano Atlântico Norte, um arquipélago de sete ilhas principais com um governo parlamentar. A Rainha Elizabeth II, representada pelo governador de Bermudas — que usa terno e gravata — é a chefe de Estado e, por isso, a defesa e as relações exteriores são de responsabilidade do Reino Unido. De todo modo, há uma certa auto-governança, com legislação interna e um chefe de governo próprio, o primeiro-ministro. O território é a mais antiga colônia britânica que remanesce entre as conquistas do passado.


Antes da chegada dos europeus não havia população nativa do arquipélago. Hoje, três quintos da população têm origem étnica africana, descendentes de escravos trazidos de diversas partes do mundo antes da proibição do tráfico negreiro, em 1807. Os descendentes de europeus são um terço da população, proveniente de gerações de britânicos e trabalhadores portugueses das ilhas da Madeira e dos Açores que imigraram para Bermudas desde o século 19. É por isso que, embora o inglês seja a língua oficial do território, é o português o segundo idioma mais falado entre as cerca de 64.000 pessoas que vivem em Bermudas. Um de seus notáveis habitantes é Mishka, cantor e compositor.


foto: divulgação


Nascido Alexander Mishka Frith, o artista de pai bermudense e mãe canadense, leva sua marca para muito além dos limites do território ultramarino, mostrando o verdadeiro tamanho das Bermudas, que caem bem em qualquer um, em todos os seus mais variados estilos e cores. Suas letras socialmente conscientes, seus vocais trabalhados e grooves dançantes como a brisa do Atlântico, tem atraído uma sólida atenção mundial desde 1999. E não por acaso, o artista tem uma história pouco usual. Nascido em Bermudas e criado em um veleiro construído por seus pais, Mishka teve uma infância única, cresceu no barco de sua família, navegando. Foi questão de tempo para se apaixonar não só pelas ondas do mar, como também pelas ondas do som, que o levariam para mais longe do que o veleiro dos pais poderia alcançar. Contrariando as lendas, embora há quem garanta serem verdade, Mishka não desapareceu no temido "triângulo das Bermudas"; ao contrário, saltou dele para o Mundo levando a rica cultura de sua terra.


Os talentos do bermudense são muitos e, além de desenvolver suas habilidades como músico, Mishka também passou grande parte de sua vida aperfeiçoando técnicas de windsurf. Ele, inclusive, chegou a representar as Bermudas em 1991 e 1992 no Campeonato Mundial de Windsurf. O vento do destino soprou mais forte. Após os campeonatos, concentrou-se principalmente em sua carreira musical. Em 1992, o músico viveu em Névis, no país insular de São Cristóvão e Névis, e se dedicou a escrever e a se apresentar, conectando-se com pessoas através da música. Pouco a pouco o jovem das ilhas britânicas do Atlântico trazia a alma e a consciência do reggae em composições acústicas e folclóricas.


Em seu álbum de estreia, Mishka (1999), o artista começou a velejar na indústria musical com espírito livre, melodias e swings que ao mesmo tempo que focam no reggae, trazem um som eclético como a cultura das pequenas Bermudas. Seu primeiro single, Give You All The Love, foi um grande sucesso no Top 40 do Reino Unido e no Top 10 do Japão. O músico tinha conseguido fazer arte, não só em suas composições, como também ampliado a voz das Bermudas para além-mar. As ilhas nunca foram o bastante para ele, que surfou também nas ondas do som pela Europa, América, Ásia e Oceania. Hoje, o bermudense tem cinco álbuns de estúdio e milhões de plays no Spotify, que representam mais de 100 vezes a população de seu lugar de origem.


foto: divulgação


Tanto êxito não é surpresa. As temáticas de justiça social e canções de amor ao próximo, sem pieguices de auto-ajuda, são contagiantes quando erguidas pelas pesadas linhas de baixo do artista. Você pode nunca ter ouvido sobre as Bermudas, mas com certeza deve ter ouvido Mishka nas diversas trilhas sonoras de filmes de Hollywood. Direto das ilhas britânicas ultramarinas os lançamentos de Mishka chegaram aos ouvidos do mundo, alcançando três vezes a posição "Número 1" das paradas de reggae da conceituada revista Billboard. Em 2009, o músico foi nomeado pelo Itunes como Novo Melhor Artista na categoria "Cantor/Compositor". Mishka, inclusive, já esteve no Brasil em 2016 para a Good Vibes Tour na casa de eventos Ilha Shows em Vitória, no Espírito Santo. O Brasil também é sua praia, e o lugar do mundo onde o bermudense é mais escutado está aqui: São Paulo.


Bermudas, embora pequena no tamanho, tem mostrado recentemente que as dimensões de sua cultura são tão extensas quanto as teorias do triângulo que lhe trouxe fama na cultura popular. Mishka é um exemplo concreto na mudança da geopolítica cultural de nossos imaginários. Se há vórtices e campus magnéticos envolvendo as ilhas, esses são emitidos pela música. Escute Mishka, não deixe que seu cérebro seja mais rápido que você. A partir de agora quando ouvir as palavras "América do Norte", não deixe as coloridas e misteriosas Bermudas de lado.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).


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