Banda bósnia Dubioza Kolektiv revela o potencial político e conciliador da música.
Por FELIPE VIVEIROS*
Tudo sempre teve viés político no Leste Europeu. Até para os sociólogos e historiadores mais experientes é difícil fugir às várias interpretações da imaginada "Europa do Leste", conhecida muito mais por fatores políticos e ideológicos do que delimita sua geografia.
Integrada por países que durante quase meio século foram governados sob um regime econômico socialista e um sistema de partido único, a cartografia do Leste Europeu assim segue em nossas mentes. A divisão clara que fazemos entre "Europa" e "Leste da Europa" deve-se não aos pontos cardeais, mas à rosa dos ventos política chamada "Cortina de Ferro". Por muito tempo ela definiu os limites que dividiam os países pertencentes ao Bloco Socialista e os integrantes do Bloco Capitalista.
Seja por falta de conhecimento ou até preconceito, essa mesma Cortina de Ferro ainda persiste no imaginário dos que enxergam a região como pobre, ou pouco diversa em cultura. A extensão do que seria o Leste Europeu é vasta e percorria desde o muro de Berlim, na Alemanha Oriental, até o alcance das fronteiras da Rússia com a Ásia, nos Montes Urais.
A conotação histórica do "Leste" tem um peso maior do que as referências geográficas ainda presentes nos dias atuais. Um exemplo? Pode não parecer lógico, mas Kirkenes, na Noruega, está muito mais ao Leste do que Kaliningrado, na Rússia. Surpresa? A Finlândia e a Estônia são comentadas, com frequência, como países sem similaridades. A Finlândia é parte da Escandinávia e a Estônia parte do Leste Europeu. Parece óbvio? Mas, não é. Os dois países são muito parecidos, tanto nos sistemas políticos e econômicos, quanto na cultura com tradições étnicas e idiomas de origem urálica. Essa é a geopolítica que habita nossas mentes.
Um bom método para desmistificar nossas crenças, tão enraizadas no entendimento popular, está no contato com as diferentes cenas musicais que nos trazem a história e transmitem a realidade da região. Pouco divulgada para além de suas fronteiras, a música do "Leste Europeu" merece destaque por suas posições críticas em mistura inteligente de geopolítica com demonstrações sonoras da estética oriental. Uma aula de Relações Interacionais.
Maior banda do momento desse lado ainda misterioso do Continente, Dubioza Kolektiv, surgiu nas cidades de Sarajevo e Zenica, na Bósnia-Herzegovina. Um bom exemplo de vanguarda para quem deseja abraçar a cultura do resto do mundo e deixar se envolver por uma mescla, nada convencional, de reggae, hip-hop, dub, eletrônica, folclore bósnio e sabores locais dos Bálcãs.
Ano passado (2019), em visita a Sófia, na Bulgária, tive a chance de ir ao show do Dubioza Kolektiv. O líder da banda, Brano Jakubović, antes da música de abertura pediu para que a plateia se dividisse em dois grupos: um à esquerda e outro à direita, e que em momentos alternados, se insultassem. A plateia vibrou e gritava palavras de ordem contra o grupo rival, no limite máximo de seus pulmões. Depois de longos minutos de embate, e suposto ódio incitado pela banda, o vocalista pede um minuto de atenção ao microfone, e pergunta: "Vocês se odeiam?". Surpresos, o grupo da esquerda e o grupo da direita olham uns aos outros, contestando em coro: "Não!". O vocalista sorri e acrescenta: "Exatamente. Muito cuidado com os falsos líderes que incitam o ódio. Que comece o show!". Eufórico, percebi que não se tratava de uma apresentação de reggae/hip-hop/dub bósnio, mas acima de tudo de um show de cidadania e civilidade de uma banda nascida em uma ex-Iugoslávia, marcada pelo conflito nacionalista e de inconcebível limpeza étnica, que foi a Guerra da Bósnia.
vídeo: arquivo pessoal/felipe viveiros
Enquanto muitos de nós nascíamos entre 1992 e 1995, o mais sangrento e prolongado conflito da Europa, desde a II Guerra Mundial, acontecia e culminava no brutal genocídio de milhares de bósnios muçulmanos. E Dubioza Kolektiv deixa tudo isso bem claro em suas apresentações ao vivo: “Cuidado, o ódio mata.” Ao meu lado, cantando cada letra do repertório, um momento emocionante. Jovens sérvios, croatas e bósnios (que identifiquei pelas camisetas), 24 anos depois, lado a lado, cujos países de origem foram os protagonistas da guerra, demonstrando ao dançar de mãos dadas o que a música promove e a política formal muitas vezes esquece: Respeito.
Os sete integrantes do grupo vivenciaram o som do silêncio, uma infância sem indústria musical e muito menos espaços para expressão cultural. A região se recuperava da profunda estagnação moral e econômica do pós-guerra. Mas, como a música é um termômetro da sociedade, o conceito da banda surgiu da necessidade urgente de dar voz às questões problemáticas da sociedade bósnia e enfrentar, coletivamente, os traumas do passado. Nasce, em 2003, Dubioza Kolektiv.
Com energia e sagacidade, as músicas da banda estabelecem uma ágora musical para que assuntos polêmicos do passado não aterrorizem as mentes pensantes do presente. É claro, a banda se tornou um fenômeno e é a maior do País. Dubioza proporciona alternativa para o pensamento internacional sobre a ex-Iugoslávia, e com liberdade e responsabilidade aborda questões políticas. E fazem dos palcos legítimos palanques de debate público, sem foco no ego e sim no "kolektiv".
Os vocalistas Almir Hasanbegović e Adis Zvekić cantam tanto em bósnio quanto em inglês (com proposital sotaque dos Bálcãs). Em meio a questões controversas dos grandes líderes mundiais no fim desta década, lançaram este ano (2020) o álbum #fakenews que aborda o entendimento do "Oriente", a ignorância política, o fervor ideológico e a privacidade/veracidade da Internet.
São sete integrantes que, com um som politizado e sem perder o clima de festa, empurram multidões ao frenesi musical passando mensagens que despertam um diálogo capaz de questionar, com um toque de anarquia, o non-sense das crenças humanas. Como vimos no ano de 2020, isso não vale só para a Bósnia, mas para todo o Planeta.
foto: divulgação
O conjunto contribui ao revelar, com humor e ironia, que a vida na região dos Bálcãs também existe fora dos estereótipos impostos na consciência popular. Paz, compreensão, tolerância e forte crítica ao nacionalismo são temas recorrentes das letras. Dubioza Kolektiv foi cotado para representar a Bósnia na mais famosa competição musical da Europa: o "Eurovision Song Contest". Como os componentes da banda teriam que assinar um documento obrigando a se abster de qualquer declaração política, não aceitaram. E foram além: ao invés de participar do evento, gravaram e lançaram música de alto teor crítico sobre a conduta do programa, a "Euro Song".
Os álbuns da banda são todos provocantes. Em Firma Ilegal (2008), o grupo aborda a situação social e política na transição econômica dos Bálcãs, a corrupção no país, a disputa ideológica entre privatizações versus propriedades sociais e as oligarquias políticas oportunistas. Para quem achou que não se identificaria com o sonoridade do Leste Europeu, mais uma novidade. A banda é Bósnia, mas os temas das letras são bem familiares a quem vive no Brasil.
O álbum Happy Machine (2015) explora as atualidades políticas do meio da década como os protestos contra o governo da Turquia no Gezi Park, em Istambul (na canção All Equal; o julgamento dos fundadores do site The Pirate Bay e a liberdade de informação (na canção Free.Mp3) e a resposta da crise dos refugiados sírios na Europa.
Dubioza é um exemplo de como conteúdos sérios podem ser abordados sob forma lírica, ao mesmo tempo que apresentados de maneira satírica e humorística. O grupo bósnio, inclusive, declarou que suas músicas "Provam que as pessoas podem dançar e pensar ao mesmo tempo." Esse é o valor político que a música tem. Um discurso pode até ser esquecido, mas a melodia e a letra de uma canção podem ser repetidas em nossos inconscientes sem que nós sequer percebamos. A música é verdade que não sai da cabeça. Toca independentemente de nossa vontade.
Dubioza Kolektiv mostra o poder que a música tem para aumentar uma consciência política pública. Acredita que é dever do artista utilizar sua comunicação para promover ideias e valores que tragam mudança para o mundo. A banda é definitivamente uma viajante cultural na arte mundial e tem participações em seus álbuns que vão desde Manu Chao, cantores indianos em punjabi, bandas de ska-rumba da Catalunha e até trompetistas da Macedônia. Dubioza prova, ao som do coro único de uma plateia composta por sérvios, croatas e bósnios, que a música engrandece quando é "kolektiv". E por isso, com justiça, já alcança o resto do mundo.
*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).
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