Filme cubano traz ousada crítica à rigidez institucional. Ternura com disciplina pode educar melhor.
Por FELIPE VIVEIROS*
Imagine que você está em um país de elevado desenvolvimento humano, nação com um sistema de saúde invejável, baixíssimas taxas de mortalidade infantil, alta expectativa de vida e serviços médicos de padrão internacional. Um sistema educacional com taxas de alfabetização que beiram os 100%, um território seguro, de pouca criminalidade e que investe 13% do PIB em educação. Estamos na Suíça, certo? Errado. Seja bem-vindo a Cuba!
Caso não esteja convencido, e até mesmo desconfiado, o Banco Mundial pode avalizar as referências. O país caribenho é considerado pela respeitada organização como o melhor sistema educacional da América Latina, e o único no continente a dispor de elevada qualidade. De acordo com a instituição financeira, com exceção de Cuba, nenhum corpo docente na região pode ser considerado de excelência quando comparado aos parâmetros globais que caracterizam os sistemas educacionais mais eficazes, como os da Finlândia, Singapura, Suíça, Holanda e Canadá.
“Então o Banco Mundial é comunista!” Não só ele, como o resto do mundo. O desempenho social de Cuba é um dos melhores em desenvolvimento e tem sido referenciado por importantes organismos internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e diversas agências da ONU. Mas, não se iluda. O sucesso de um sistema educacional está nas habilidades de colocar o jovem no centro do projeto social e não apenas na arte de acumular conhecimento. É isso que nos mostra o filme cubano Numa Escola em Havana (2014), que traz uma ousada crítica à rigidez institucional. Na sala de aula o espectador é o aluno, e aprende que até mesmo os modelos de sucesso precisam quebrar as regras para ensinar. Cuba em eterna (r)evolução.
O longa, dirigido pelo cineasta da capital caribenha, Ernesto Daranas, retrata a luta de uma experiente professora para impedir que um menino de comportamento “subversivo” seja enviado à “escola de reeducação”. Chala, garoto de 12 anos interpretado de maneira brilhante por Amando Valdes Freire, é criança-adulta, o provedor de sua própria casa. Numa Escola de Havana não lida apenas com o sistema educacional cubano, mas com a atenção que ele dá ou deixa de dar às condições sociais e econômicas que afetam o aprendizado nas escolas do país. Um olhar sensível e profundamente humano sobre a educação, que pode ser marginalizada, até nos sistemas mais inclusivos.
foto: divulgação
Carmela, a decana professora da escola, busca superar a burocracia para criar um ambiente de liberdade em um sistema que, embora ofereça boas condições de aprendizado, falha em tratar os alunos de modo igualitário, mas sem entender cada indivíduo como pessoa única que é. O comportamento agressivo de Chala não é infundado. Filho de mãe alcoólatra e prostituída, o menino passa a maior parte do seu tempo vendendo pombos-correios e cuidando de cães de lutas ilegais gerenciadas pelo vizinho. Sua rebeldia é que paga as contas, ele não é subversivo é sobrevivente. A escola tem força estabilizadora em sua vida, e a tentativa de marginalização por parte de um burocrático sistema de ensino propõe penalizá-lo por ser quem é.
Quando o menino é enviado para estudar em uma "instituição de reeducação”, a professora Carmela inicia dura campanha para trazê-lo de volta à escola. A madura educadora torna-se vítima de caça às bruxas liderada por administradores do conselho escolar. Suas crenças permissivas são incongruentes com os protocolos e as normas do sistema educacional cubano. Mulher idealista, vivida, Carmela consegue ver os humanos por trás das penumbras dos regulamentos. A professora, que foi educada antes da Revolução Cubana e tem uma visão de mundo mais flexível, leva em conta as variáveis socioeconômicas e as questões comportamentais dos alunos. A dinâmica faz emergir um conflito no qual o futuro de Chala, e da própria professora, reflete a dinâmica sistêmica da Cuba contemporânea. Em uma reunião com os que tentam aposentá-la por descumprir regras ao defender o menino rebelde, é chamada de “antiquada”. Responde com firme dignidade: “Não estou aqui há mais tempo do que aqueles que nos governam.”
A educação pública tem sido uma das principais prioridades do país desde a destituição do presidente Fulgêncio Batista, em 1959. O país estabeleceu como meta eliminar o analfabetismo em toda a ilha. E conseguiu. Hoje, Cuba apresenta uma das mais altas taxas de alfabetização do mundo, entendida como “prioridade máxima” por Fidel Castro ao se tornar primeiro-ministro, no mesmo ano da queda de Batista. O país desafiou as camadas de desigualdade presentes nos territórios caribenhos e se tornou referência mundial. Mas, todo sistema rígido tem um preço. Na trama, devido à insubordinação e situação familiar, Chala entra no radar da polícia e dos assistentes sociais como delinquente. Carmela, vista como velha demais para seguir educando, é metáfora social que demonstra que a ternura rigorosa pode ensinar. A professora não vê um delinquente e sim a dureza e a suavidade, a maturidade e a infantilidade em um único ser. O menino, embora tenha a mãe dentro de casa, é órfão. Um sistema inclusivo não pode excluir, as regras de conduta ignoram a essência de cada indivíduo.
foto: divulgação
A produção não nos manipula com heroísmos em sala de aula. Pelo contrário. O diretor mostra que as escolas desabariam sem profissionais que lutem para que as crianças não sejam descartadas pelo sistema. Numa Escola em Havana é uma chance para compreender como as normas, por mais bem intencionadas que sejam, apresentam falhas éticas quando ignoram uma visão holística da educação. Nas palavras da personagem Carmela: “Se você quer um delinquente, trate-o como um." O ser humano, embora social e coletivo, ainda é único, e suas peculiaridades não se adaptam, necessariamente, a um mesmo sistema.
"Ser culto é ser livre", a máxima do poeta José Martí, o grande mártir da Independência de Cuba. A familiaridade com a literatura, o grande modelo de educação para o mundo e as conquistas do passado, entretanto, não são suficientes quando o Estado responde por repressão precoce. Numa Escola em Havana se destaca pelos valores que tem, dando ao público uma oportunidade de refletir sobre as razões éticas que sustentam a solidariedade do ser humano e a arquitetura moral de um país. O aluno encontra na simpatia do professor o seu refúgio, e é nele que manifesta sua própria liberdade, expressão e afeto. A defesa do menino é a razão de ser da professora no limiar da carreira, para quem educar é um rigoroso ato de amor. Para que se possa viver em um mundo de progresso, é preciso seguir o exemplo da relação Carmela e Chala. A solução para um sistema educacional de sucesso não está nas estatísticas, mas em quebrar regras quando a educação é o melhor caminho para fazer sua própria revolução. Disciplinar-se pela indisciplina.
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