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O PEQUENO POLEGAR DA AMÉRICA

Bandas e artistas de El Salvador mostram como a instabilidade política molda a estabilidade cultural.


Por FELIPE VIVEIROS*


Você sabe onde fica a América Central? Claro, dirá você. Mas, não no mapa. A pergunta refere-se à mídia.


Com rara exceção da Costa Rica – vista como um paraíso de música, moda e vida noturna – o subcontinente continua desconhecido para os que só conhecem as ditaduras e guerras civis que assolaram a região dos anos 1970 até 1990. Nenhum continente é apenas um vulcão político. É na adversidade que surgem as melhores e mais intensas erupções culturais. Chamado pelos seus próprios habitantes de “o pequeno polegar da América”, descubra o menor e mais povoado país da América Central: El Salvador.


As ruínas maias e astecas fazem ruir estereótipos. Antes da chegada dos espanhóis no século 16, o território salvadorenho já havia sido colonizado por um conjunto importante de povos indígenas. Entre eles, os pocomam, chortí e lenca – de herança maia – e os pipil, cuja civilização muito se assemelhava à dos astecas no México. O casamento dos colonos espanhóis com a população nativa resultou em um povo amplamente homogêneo do ponto de vista étnico. Hoje, cinco séculos depois, quase 90% da população é mestiça.


A vida cultural de El Salvador, assim como sua população, é amálgama de características indígenas e espanholas, embora predominem as influências europeias. A maioria das atividades culturais indígenas foi suprimida pelo governo desde os anos 1930. Mas, não por completo. A cultura é como um rio. Uma vez retificada reage, transborda causando enchente. Nas intensas correntes de El Salvador, a água tem som de violões, marimbas, xilofones, flautas e tambores. Traz, da nascente à foz, a voz dos maias, o som dos astecas e o estilo ibérico. Os salvadorenhos são conhecidos por sua engenhosidade, como deixa claro a banda de swing, cumbia, rock n’roll, bolero e especiarias latinas, Cartas a Felice.


foto: divulgação


O grupo, assim como seu país de origem, não se encaixa em um gênero musical. Cartas a Felice mostra que a identidade, para ser única, deve ser múltipla. O nome do conjunto é uma referência ao livro do escritor boêmio Franz Kafka, que reúne parte de suas correspondências para a namorada, Felice Bauer. O que literatura boêmia e Felice Bauer teriam em comum com El Salvador? Os membros da banda se declaram “senhores do apocalipse”, inimigos do abuso e da discriminação. É inevitável. El Salvador vive uma realidade kafkiana. Seu álbum de 2015, Mango Swing é uma distopia sobre delírio, diversão e nostalgia. Onde a violência é a norma, os salvadorenhos estão armados com guitarras, flautas e cavaquinhos. Escrevem suas próprias cartas à Felice, mostrando a América Central em ritmo de swing europeu. Franqueza da música.


A turbulenta história política de El Salvador inclui quase um século de ditaduras, guerras civis e disputas de gangues. Do final dos anos 1970 até o início dos anos 1990, El Salvador foi foco da atenção internacional devido à guerra civil e ao envolvimento externo em seus conflitos internos. O conflito, que provocou a insurgência de esquerda militar contra as Forças Armadas Salvadorenhas – apoiadas pelos Estados Unidos –, foi marcado por décadas de repressão e profunda desigualdade social. A instabilidade política e econômica moldou a estabilidSwing e seu rendimento cultural, fazendo com que a música fosse a caminho para uma sociedade em trauma. Embora o reggaeton seja o símbolo de resistência social na maioria dos países latino-americanos, o “polegar da América” teve uma história diferente. Devido ao grande número de salvadorenhos que imigraram – e retornaram – durante o tempo de instabilidade e guerra, o estilo da população urbana ressoa também influências estrangeiras, como traz Carrot, banda sensação do indie no país.


foto: divulgação


Formado na capital San Salvador, o grupo segue linha alternativa que procura inovar na região. Com proposta singular e independente, Carrot conquistou o carinho e o respeito do público graças a sons modernos e à qualidade de suas composições. Influenciada por artistas britânicos, como Alt-J, Jake Bugg, The XX, Glass Animals e Radiohead, a banda salvadorenha desenvolveu um estilo “indie da terra”. No início, o conjunto se apresentava em inglês na esperança de que sua música transcendesse fronteiras e conquistasse o público internacional. Seria esse o melhor caminho? O sucesso chegou em espanhol com o single Liviano, o primeiro trabalho do grupo fora do inglês. A canção segue um estilo de composição com acordes britânicos e alma salvadorenha, sob a intenção de mostrar que a vida deve ser levada de modo mais leve e "sem arrependimentos do passado”. A banda – que agora só compõe em espanhol – tem presença constante nas rádios e shows por toda a América Central, como é o caso do pop da jovem cantora YEiLY.


foto: divulgação


Na combinação de sensações tropicais, toques eletrônicos e urbanos, surge uma voz doce de texturas vivas. YEiLY é o exemplo perfeito de determinação e talento salvadorenhos. Depois de três anos como front woman de uma banda de rock alternativo, a artista – e modelo – decidiu iniciar um projeto solo que busca alcançar o público com um pop urbano, mas baseado no espírito salvadorenho. A música de YEiLY é acompanhada em seus videoclipes por imagens coloridas das praias e paisagens deslumbrantes, gerando uma fantasia de luxo selvagem para a pista de dança. El Salvador é pop. Isso já sabiam os maias e os astecas que lutaram por essas terras. A jovem cantora quebra padrões sexistas da indústria musical, proporcionando às mulheres do país mais destaque no cenário local.


Bandas e artistas deixam claro que o som de El Salvador transcende qualquer tipo de guerra e violência. Se a realidade do país é kafkiana, seus músicos se libertam, com seus próprios romances e histórias, de uma condição opressiva. Sobressaem-se os que se edificam na cultura local e autêntica, mesmo que com influências externas. Cartas a Felice, Carrot e YEiLY deixam claro que El Salvador só precisa de El Salvador para transcender suas fronteiras. Saber onde fica a América Central é fácil. É com o pequeno polegar da América que se imprime a digital do continente.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).




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