No formigueiro da instituição familiar, filme costa-riquenho quebra tabus e mostra que o amor materno pode ser machista.
Por FELIPE VIVEIROS*
Uma específica América Central conhecida por sua democracia estável de longa data, por seu contingente de trabalho qualificado e maioria da população com conhecimentos de inglês. Um país que, após sua Guerra Civil, adotou uma posição pacifista e aboliu suas forças armadas de maneira permanente. Uma das nações mais felizes do mundo, reconhecida pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) como superior a outras com os mesmos níveis de renda. Lugar onde 6,9% do PIB é destinado à educação, com alto nível de serviços sociais, longa expectativa de vida e baixos índices de corrupção. Utopia? Não. Esse lugar existe: Costa Rica.
Embora o país centro-americano seja um case de sucesso, não é sinônimo de plena igualdade... Principalmente, quando o assunto é gênero. O machismo acontece e está bem ativo na Costa Rica. Assim como em muitos países latinos, a maioria das mulheres tem muito o que contar sobre vários graus de assédio em diversos aspectos de suas vidas – desde a rotina na casa até o local de trabalho. A Costa Rica coloca muita ênfase no papel da mãe e no valor da beleza feminina. Para os mais conservadores, desconstruir o “machismo casual” pode parecer desimportante. No entanto, as consequências de não abordar uma questão tão séria leva à violência cotidiana. É isso que aborda o filme costa-riquenho O Despertar das Formigas (2019).
foto: divulgação
Selecionado como o representante da Costa Rica para a categoria de Melhor Longa-Metragem Estrangeiro no Oscar de 2020, a produção retrata os desafios de uma jovem mulher para escapar das correntes familiares. Os passos – hesitantes – na busca da liberdade da mulher, esposa, nora, cunhada e mãe, são retratados com sutileza na estreia da diretora Antonella Sudasassi. Embora diversas sociedades afirmem viver em um sistema no qual o machismo está em declínio, as experiências cotidianas continuam a ser mais universais do que gostaríamos de acreditar. Isabel, interpretada por Daniella Valenciano, e Alcides, no papel de Leynar Gómez, são um casal de San Mateo de Alajuela com duas filhas pequenas. Alcides quer mais um filho, Isabel não. A jovem inicia, escondendo de todos, um tratamento contraceptivo.
O tom da primeira cena deixa claro sua posição sobre o que seja o ideal de família. A câmera se debruça sobre Isabel, enquanto ela faz um bolo de aniversário. Por trás da cena, o caos da vida em grupo. Sua sogra lhe ensina como o bolo deve ser feito e Isabel mergulha suas mãos no doce, destruindo-o, dilacerando-o. O que acontece não é real. É o primeiro de muitos momentos de fantasia escapista da personagem principal. O espectador vê, e sente, o que passa pela cabeça da costa-riquenha. Isso se manifesta em visões de formigas pela casa, medo da queda de cabelo e de esmagar o bolo que ela decorou de maneira tão meticulosa. As alucinações de Isabel são vívidas e simbólicas. As formigas, o cabelo, a maternidade e a sexualidade são visões sufocantes até que deixem de ser.
Humilde, religiosa e tradicional, sua família “chefiada” pelo marido pressiona por um terceiro filho. De preferência um menino. Alcides quer um homem que dê continuidade ao seu nome e traga “orgulho” de macho. As duas filhas, ainda pequenas, dão respaldo ao pai e imploram à mãe por um irmãozinho. Todos culpam Isabel, silenciosamente. Espera-se dela, assim como das formigas na natureza, que de maneira mecânica e incansável, faça o bem para sua comunidade. No formigueiro da instituição familiar, a jovem se afasta dos parentes para construir um espaço pessoal, um refúgio no qual ela possa resistir ao que lhe é exigido. O papel de mãe e esposa demanda, desgasta, cansa, consome. De maneira ousada, a jovem começa a separar e esconder seus ganhos como costureira. A iniciativa é o caminho secreto para que ela possa dar-se ao luxo de comprar pílulas anticoncepcionais.
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Um estudo realizado na Costa Rica no início dos anos 2000 mostrou que a maioria das mulheres, quando em relações sexuais ativas, usava contraceptivos. O aborto é ilegal no país, embora esteja disponível em clínicas privadas para aqueles que têm dinheiro – e em becos escuros para aqueles que não têm. Em um país onde as mulheres ainda lutam pelo controle de seu corpo, uma atitude simples como decidir entre economizar dinheiro para comprar anticoncepcionais ou dizer ao marido que não quer mais filhos, parece radical. E causa medo.
Perante a lei, mulheres e homens na Costa Rica gozam de absoluta igualdade. A Constituição de 1949 reitera isso, e uma emenda de 1966 proíbe a discriminação com base no sexo. O código de família, de 1974, estipula que maridos e esposas compartilhem direitos e responsabilidades iguais. Há leis contra o assédio sexual e a discriminação de gênero como a Ley sobre la Igualdad Real de la Mujer, colocada em prática nos anos 1990. O diploma legal tem o objetivo de fechar a lacuna entre os direitos das mulheres e suas vidas cotidianas e prevê uma série de reformas, incluindo que as escolas modifiquem o conteúdo de livros escolares que promovam estereótipos machistas do tipo: "A mãe faz a massa enquanto o pai lê o jornal".
Embora o suposto avanço na legislação, a vida em um vilarejo costarriquenho que lembra um cartão postal está longe de concretizar o que se conquistou no papel. O sorriso enigmático de Isabel, de uma acuada Mona Lisa, é apenas máscara enquanto atende necessidades de todos, e não realiza seus sonhos. A pressão para ser uma “boa mãe”, porque toda mãe “tem” que ser, significa nunca confessar que está lutando para fazer o impossível. Os soluços das filhas, o pedaço de chiclete preso no cabelo das crianças, buscá-las na escola e ensiná-las a trançarem o cabelo são uma fonte constante de estresse para Isabel. A mulher-mãe sente-se como uma verdadeira médica de plantão, enquanto seus desejos próprios são ignorados.
foto: divulgação
O filme cozinha a problemática em fogo baixo, as metáforas se enredam com a realidade. O Despertar das Formigas é uma alegoria para o aprisionamento da vida doméstica, cotidiana, familiar. A produção revela isso em cenas inteligentes, como a da mãe e suas duas filhas sentadas em fila com seus cabelos trançados. Fica claro a celebração do afeto de mãe/irmã. Não se engane. Os longos cabelos que se conectam e o jogo de luzes é pura ironia. A luz brilhante da Costa Rica vive nas sombras do filme, uma alusão a um clima feliz, mas ambíguo. Um alerta de que afeto e aprisionamento não são excludentes, podem coexistir. Não é a família de Isabel que a torna miserável. É a própria ideia de família. Viver a frustação de ser mãe e esposa sem nunca poder expressar esse sentimento publicamente. O cotidiano descortina, de maneira sublime e despretensiosa, os rígidos papéis de gênero e o pensamento de clausura. As formigas agem, de maneira automática, para fortalecer os arquétipos da sociedade sem o menor respeito aos legítimos desejos individuais.
O Despertar das Formigas é um retrato silencioso de um conflito que se estende muito além da Costa Rica. A tensão cresce com os que lhe são mais próximos e Isabel se vê em ruptura despertando possibilidades de uma vida vivida em seus próprios termos. Não deveria ser tabu para uma mãe ou esposa imaginar uma vida sem filhos, sem marido. A diretora Antonella Sudasassi, deixa claro não só na obra, como também em diversas entrevistas que “o amor materno pode ser machista: agradar, servir, ajudar, ser casada, ser mãe... ser para os outros”. O filme costa-riquenho procura explorar a violência dissimulada. As leis, por melhor que sejam, não resultam eficazes quando o abuso e o machismo casual são ensinados e exigidos à portas fechadas. Romper o silêncio e abandonar hábitos são o verdadeiro amor. Aprender a amar é um ato político, duvidar do amor é resistência social.
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