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NASCER ESTRANGEIRO

Descubra no filme cabo-verdiano “Djon África” que as pessoas não têm uma só origem, mas várias versões de si mesmas.


Por FELIPE VIVIEIROS*


"Escute este menino aprender suas raízes

Sinta o chão e o clima de seu país

Todos precisam de uma origem

Um senso de missão.”


Esse é o refrão da música tema de abertura do filme cabo-verdiano Djon África (2018). No gingado da faixa de rap o protagonista cuida de suas tranças rastafári, marca estética de sua identidade como um africano que hoje vive em Portugal. O senso de missão é colocado em xeque quando o penteado e o uso do “português padrão” marcam o povo das ilhas como estrangeiros na própria África.


De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM) o número de cabo-verdianos diásporos em todo o mundo tem ultrapassado a população nacional. O número dos que vivem no Exterior é o dobro dos 540.000 residentes no país. Seria o mundo mais cabo-verdiano fora de Cabo Verde? Nem sempre. Embora o Português seja o idioma oficial, é o Crioulo – uma das mais antigas variações da língua portuguesa – que faz ecoar a voz de seus residentes. Muitos cabo-verdianos pensam em português e sentem em crioulo cabo-verdiano. Seus corações palpitam a História e o calor da antiga colônia portuguesa a 350 milhas da costa oeste da África.


A produção cabo-verdiana é um road movie. O enredo mostra que a realidade é fluida, assim como nossas próprias raízes. O filme – de maneira sútil e cuidadosa – faz subir o calor e o sal doce de Cabo Verde entre cenas de natureza, pertencimento cultural e exclusão. Djon África mostra que as pessoas não têm uma só origem... E, sim, várias versões de si mesmas. Embora o filme pareça um documentário, a história é fictícia em sua realidade.


foto: divulgação


O protagonista Djon vaga o dia todo pelo apartamento de sua avó, e “ajuda” a irmã com pequenos furtos nas lojas de Lisboa. A vida do rapaz muda quando uma senhora estranha que ele encontra na rua, afirma conhecer seu pai. E afirma que se trata de um “malandro sem rumo em Cabo Verde”, um homem que se parece com Djon e que fugiu de sua família. O jovem de ascendência cabo-verdiana é, então, instigado a viajar para as ilhas africanas com a missão de encontrar o pai.


Os diretores mostram o estereótipo e a alienação aos quais os cabo-verdianos estão sujeitos em Portugal. Djon começa a se perguntar sobre a suposta pátria que ele nunca viu ou conheceu. No avião, a caminho da África, o jovem brinca com uma moça ao insistir que ele “é de Cabo Verde”, enquanto ela constantemente o chama de estrangeiro. Seu penteado rastafári, suas roupas de estilo urbano, seu sotaque português marcam o tom de seus novos encontros. A viagem para o continente africano é sempre questionada por todos, e por ele mesmo que não está seguro da aventura.


Dirigida por Filipa Reis e João Miller Guerra, a jornada de Djon leva à diferentes verdades sobre paternidade e responsabilidade. Uma alegoria sobre a história e a origem das antigas colônias portuguesas, uma odisseia de um filho que busca um pai estrangeiro e desconhecido. Em 1951, em meio ao movimento africano de descolonização, o status de Cabo Verde foi modificado para "províncias ultramarinas" e os seus habitantes, 10 anos mais tarde, receberam a plena cidadania portuguesa. Garantia de respeito? Nem tanto. Os documentos garantiram nacionalidade, mas não identidade. Eram reflexo de uma origem sem origem, de raízes que não nascem nas áridas terras de Cabo Verde, mas que caem nas pontas das folhas já secas da relação com Portugal. A população começou a agitar pela independência completa, que foi alcançada em julho de 1975. Como já anunciava o rap de abertura do filme: “Todos precisam de uma origem. Um senso de missão”. A busca de Djon para encontrar seu pai é como a busca de Cabo Verde pela sua verdadeira essência. É dura, e só será importante caso encontre a si mesmo.


foto: divulgação


Entre o lúdico e o melancólico, a busca de Djon começa com ritmo calmo, reviravoltas inesperadas e encontros divertidos, atraindo o jovem para a vida noturna da cidade e a solidão prazerosa do campo. A trilha sonora, do início ao fim, compõe Djon África com um sotaque local e político. O filme é leve no incidente da vida e carregado de verosimilhança com a realidade dos diversos cabo-verdianos que vivem em Portugal. O suspiro por uma verdadeira terra cessa apenas nas agitadas ondas das praias do país africano.


Miguel, pouco a pouco, aprende sobre o direito de ser e nascer, grande parte baseado nas fundações culturais do país de sua família de origem. O design de som enfatiza o elemento da experiência de Miguel. As tradições musicais da África renascem em Cabo Verde como “batuko” (derivado do verbo português que significa "bater"), um gênero que apresenta o polirritmo e o chamado e a resposta desempenhada por um grupo de mulheres. As tradições europeias são reveladas na “morna”, um lamento comparável ao fado português. Todas, claro, regadas a muito “grogue”, bebida típica feita de cana de açúcar.


Vemos as cidades e áreas rurais de Cabo Verde através dos olhos do forasteiro nativo: "É óbvio que você não é daqui", dizem os locais. A busca de Miguel pelas próprias raízes é dúbia e hesitante. No auge de seus vinte e poucos anos, o jovem ainda não fez a transição completa para a vida adulta e Cabo Verde o faz avançar para uma nova maturidade, onde ser responsável é também entender e enfrentar o lugar da onde veio. Em um mundo fragmentado, histórias de deslocamento cultural nascem de uma semente e florescem outras flores em seu próprio gênero e estilo.


A fotografia é marcante e os planos longos planos retratam a beleza sinuosa das paisagens de Cabo Verde, que como nota Miguel, é “feita de cores mais brilhantes que as de Portugal.” A beleza natural da paisagem do país é a sensação de seu mundo interior. É difícil dizer se a peregrinação “de volta à África” significa alguma certeza para Miguel. A vida, as paisagens, as pessoas, os sons, os sabores, as texturas preenchem nosso ser ao mesmo tempo que não são suficientes para superar a dificuldade de quem procura um “lar”.


A cultura cabo-verdiana é porta de entrada para um mundo de descobertas e revela que a interculturalidade, embora encantadora, desperta questões de identidade que não correspondem às expectativas dos nossos sonhos. “Aprender as raízes e sentir o chão e o clima de seu país” ajudam no processo. O senso de missão dos cabo-verdianos só estará completo quando deixarem de ser estrangeiros em seus diversos países de origem. O mundo é mais cabo-verdiano dentro e fora de Cabo Verde.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).


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