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MESTIÇAGEM COSMOPOLITA

A linha imaginária que passa pelo Equador não divide o mundo em dois. Divide o mundo em vários mundos.


Por FELIPE VIVEIROS*


A América do Sul ainda não foi descoberta. Os mais de 500 anos de registros europeus continuam sendo uma versão limitada da História. Com o tempo, chegamos à conclusão de que nosso continente é um eterno descobridor, uma caixa de surpresas independente em que cada som, gosto e cheiro ainda são um mistério. Aqui mantemos os segredos do sabor africano e a sabedoria indígena daqueles que sempre habitaram essa terra. Mestiça por nascimento e produto do contato – ainda que muitos se vangloriem de seu purismo – a América do Sul é uma prova de que somos feitos de cores, sabores e texturas diferentes. Um dos maiores exemplos vem de um dos países mais subestimados da região: o Equador.


A diversidade geográfica e cultural do Equador – desde os povos indígenas nos Andes e na Amazônia até os mestiços e equatorianos urbanos – aliada ao crescimento econômico crescente na última década, deu início a um movimento cultural inovador no país. Nesse período de criatividade acentuada surgiram músicos que estão ampliando as fronteiras e redefinindo a música através de todos os gêneros. Um grande expoente do movimento é a banda fusion equatoriana Swing Original Monks.


foto: divulgação


O grupo é o mais próximo de um bufê continental de um chef na cozinha do Mundo. Sua música e sua criatividade – sem restrições – são como um rio que, embora flua para a América do Sul, traz águas mágicas de diferentes épocas e lugares. Atraídos pelo magnetismo de Quito, o grupo deixou para trás o conceito convencional de música e aposta na formação de um som híbrido. O “resto do mundo” é o ponto de encontro de uma da jornada sonora na qual culturas, pensamentos, roupas e influências se misturam com as raízes cosmopolitas que habitam seus personagens. Vindos do Equador, Colômbia, Áustria e Estados Unidos, os oito membros do Swing Original Monks trazem suas próprias preferências. A melodia dos “monges” tem gosto de universo, sem deixar de pertencer ao Equador. Tem jeito de mundo no centro do mundo, com letras que cortam a costa, as terras altas e a selva da América do Sul.


O álbum de estreia da banda é uma ode à nobre mestiçagem. La Santa Fanesca é uma homenagem à sopa típica equatoriana – consumida apenas na Páscoa – que mistura 12 tipos de grãos com origens na agricultura dos antigos habitantes do Equador. Algo 100% equatoriano e 0% puro. Os ingredientes? Uma colher de sopa de rock, merengue salpicado, meia xícara de música eletrônica, pitadas de jazz e cumbia a gosto. A “cozinha musical” reflete o quão humanos somos: parecidos e opostos, doces e amargos, brancos, negros, amarelos, vermelhos e misturados. Swing Original Monks não faz (con)fusão, mas infusão. Extraem a essência da música popular em água fervente, adoçam com poesia urbana e a servem com biscoitos. As letras de suas canções abordam diferentes temas, desde a paisagem pitoresca da cidade de Quito, até reflexão política e social com um pouco de sátira. O experimentalismo e o folclore não acabam por aí.


O rock chegou ao Equador em meio à ditadura militar, nos anos 1960. No contexto da cultura política moldada pelo catolicismo, o gênero foi considerado por grupos de direita como um movimento perigoso que seduzia a juventude. Para os grupos de esquerda, o gênero era considerado uma expressão do imperialismo cultural que corrompia a identidade. Na encruzilhada política do som, bandas equatorianas começaram a fazer o uso de elementos indígenas inovando o gênero no país. Nos últimos anos, cidades como Guayaquil e Quito desenvolveram um cenário musical que permitiu às bandas alcançar popularidade internacional gerando impacto sobre as cenas locais. Os novos artistas, agora têm padrões mais elevados de produção musical, como o da jovem Paola Navarrete.


foto: divulgação


A cantora invadiu a cena equatoriana esculpindo um novo espaço não para o rock, mas para o pop alternativo. Seu single Única responde aos problemas sociais e discute, protesta e encontra soluções para o preconceito e discriminação das diferentes cores da pele, nacionalidades e orientações sexuais. A temática é muito bem-vinda não só no Equador, como também no Brasil e em outras sociedades do mundo que sonham e flertam com a ideia de sociedade homogênea. Com seu som pop – suave, sutil, mas contundente – sua missão artística de tentar decifrar a vida, reinventar, espalhar empatia, Paola Navarrete emergiu como a principal diva da cena musical do Equador. Sua composição é caracterizada por um toque poético distinto, cobrindo também uma série de temas cotidianos – e, claro, políticos – como amor, mudança e abandono. A cantora é o Equador pop do modo mais autêntico, um termo que define bem o país.


A ideia de que falar espanhol é o que faz uma pessoa “latina” ainda persiste em diversos cantos do mundo. O fato é que a comunidade latina é complexa em sua infinidade, e muitos idiomas fazem parte da latinidade. O cantor-compositor Mateo Kingman, que cresceu na Amazônia equatoriana, é um dos vários artistas que desafiam essa noção ultrapassada ao trazer línguas e estilos indígenas para o mundo da música.


foto: divulgação


Seu álbum Astro exige atenção do início ao fim, com mensagens que se conectam às questões ambientais afetando o povo amazônico. O jovem funde os sons da floresta com hip-hop, rock e pop. Sua música canta biodiversidade, esboça aquarelas da vida local. Seus sons guiam o ouvinte desde a mata fechada até as altas montanhas dos Andes, do emaranhado de árvores ao som do vento que uiva nos pântanos. Kingman foi criado em Macas, uma pequena cidade da Amazônia de muita riqueza cultural da comunidade Shuar. Abraçou a mitologia do som, mergulhou nos rios em busca de sons antigos das criaturas aquáticas. O cantor explora a natureza universal da música, que liga a condição humana – finita e pequena – com o cósmico. Uma harmonia caótica.


A música do Equador é influenciada tanto pelas condições geográficas que enriquecem o país, quanto pela cultura que o torna tão diverso. O Equador não é pequeno. Uma das cenas mais contrastantes e coloridas do nosso continente, um lugar mágico onde as bandas são os chefs que alimentam a cozinha fusion da música. Uma explosão de sabores que sabe dançar as tendências globais sem tirar o pé firme de seus próprios sons. Quando os espanhóis chegaram, suprimiram os sinais da cultura indígena, convertendo costumes, sabores e formas de ser. Quinhentos anos depois, Swing Original Monks, Paola Navarrete e Mateo Kingman são o resultado desse choque cultural.


As novas gerações já não aceitam a versão limitada da História. Se o continente sul-americano é um eterno descobridor, tem uma explicação: ele é mestiço. Há gosto e cheiro em tudo, e cada som tem o seu próprio sabor.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).

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