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LIBERDADE CONQUISTADA: Q-POP!

Inspirada pelo pop coreano, banda Ninety One define a nova versão do homem cazaque.


Por FELIPE VIVEIROS*


Desde o colapso da União Soviética, Rússia e China mudaram o status de seu relacionamento de “adversários da Guerra Fria” para “parceiros pragmáticos”. Com o desejo comum de desafiar um sistema internacional dominado pelo Ocidente, o relacionamento entre as duas potências é tático. Incógnita na mídia – e estrela no ambiente acadêmico – a Ásia Central é um dos temas mais discutidos no que diz respeito às relações entre Pequim e Moscou.


A região, antes considerada parte da esfera de influência russa tem, desde meados dos anos 2000, experimentado um notável aumento da atividade chinesa. A situação atual funciona como uma "divisão de trabalho” na qual a China foca na expansão do comércio e de investimentos e a Rússia domina de maneira política e militar. Seria essa manobra completa? Enquanto as duas potências dançam juntas no bruto balé das influências territoriais, é a astuta Coreia do Sul que, com seus delicados tutus, passa de maneira sublime pelos palcos sociais da Ásia Central. Como? Influência cultural.


Quer uma prova concreta de que investir em cultura traz poder político? A Coreia do Sul é um dos únicos países do mundo – se não o único – que tem o objetivo de tornar-se o principal exportador mundial de cultura popular. A China e a Rússia podem não perceber, mas o poder de um Estado não está limitado pelas forças bélica e econômica. Existe um poder intangível que um país exerce através de sua imagem. Enquanto o tradicionalismo impera na política externa de ambos os países, é a nação sul-coreana que se torna um dos maiores fenômenos político-culturais da Ásia.


O país, que entende cultura como política de Estado, vem aumentando sua presença econômica na Ásia Central e servindo como alternativa liberal frente a seus vizinhos russos e chineses. No Cazaquistão, a mídia e o entretenimento sul-coreanos alcançaram o status de mainstream durante a última década. Batizado em música pop sul-coreana, nasce o Q-pop no Cazaquistão, o mais recente fenômeno que domina as ondas de rádio no país transcontinental, de maioria muçulmana, no centro da Ásia.


O gênero musical apresenta músicas contagiantes, coreografia sincronizada, maquiagem e figurinos estilizados. Quem pensa que música pop é entretenimento, está enganado. A banda Ninety One é a pioneira do novo gênero asiático. Seu nome faz referência ao ano de 1991, quando o Cazaquistão conquistou a independência da ex-União Soviética. Um número que carrega emancipação e liberdade criativa. Algo difícil no Cazaquistão.


foto: divulgação


Ninety One foi recebida com hostilidade. Inspirada pelo K-pop, a banda se apresenta com maquiagem, brincos e cabelos coloridos, “uma ofensa” a masculinidade. (Des)ativistas locais, enfurecidos com a aparência do grupo, protestaram exigindo o cancelamento dos shows da banda por ser "super gay". O corpo e o comportamento das pessoas foi policiado pelo público, como mostra o documentário Face the Music sobre a ascensão do Q-pop no Cazaquistão. A resposta ao repúdio veio em forma de som. O ódio não foi páreo para as coreografias e músicas viciantes com videoclipes manhosos. O pop andrógeno, cabelo colorido e guyliner entra em cena para mudar um país conservador e desafiar as normas convencionais de gênero.


Os protestos não desencorajaram o grupo. Sua música é sobre amor e unidade. Apesar do número significativo de pessoas que ainda rejeitam a banda, Ninety One agrega uma legião de seguidores em todo o país, fãs que (re)conhecem uma nova versão de como “um homem cazaque pode ser”. O grupo, fundado em 2014, foi idealizado como uma versão doméstica do K-pop – com pretensões cazaques. Embora tenha semelhanças com o gênero sul-coreano, a diferença mais óbvia diz respeito ao idioma e à cultura locais.


A sociedade cazaque experimentou uma extensa conversão socioeconômica e cultural sob o regime soviético, chegando a ser conhecida como “a nação mais russificada de todo o bloco". A vestimenta europeia, a erradicação das práticas islâmicas e a falta de conhecimento da língua cazaque entre os jovens urbanos se tornaram as características do antigo povo soviético. Quando o país declarou a independência em 1991, décadas de políticas educacionais favoreceram o idioma russo como o principal meio de comunicação. A população associava a língua às classes educadas, enquanto o cazaque era visto como “manifestação retrógrada das vilas rurais”.


foto: divulgação


O Q-pop tem sido uma ferramenta para auxiliar no rebranding nacional e projetar uma imagem externa “não russificada” para o resto do mundo. O “Q” no Q-pop significa Qazaq, que é como o Cazaquistão é grafado em latim. Uma decisão política que opta pelo uso do alfabeto latino, ao invés do alfabeto cirílico. O nome do gênero musical é um passo para enfraquecer os laços históricos com a Rússia, dentro de uma política de Estado.


Por muito tempo o cenário musical no Cazaquistão teve foco na música estrangeira, devido a ausência de referências culturais marcantes no próprio país. Ninety One e a criação do Q-pop ofereceram uma alternativa. A cultura dos “meninos suaves” está em alta no país centro-asiático e, cada vez mais, a juventude é acolhida por não seguir tradicionais padrões hiper-masculinos. Hoje, há dezenas de bandas de Q-pop no Cazaquistão inspiradas pelo sucesso do Ninety One. O gênero está, inclusive, ganhando popularidade em países vizinhos e conservadores como a Turquia, o Azerbaijão e o Turcomenistão.


O Q-pop se alicerça no legítimo desejo dos jovens cazaques por diferentes modelos e mudanças sociais. O que atrai os fãs é uma combinação de fatores, o anseio por um homem diferente, mais moderno e desafiador do que apresenta a cultura chinesa e russa. A Ásia Central está passando longe de Pequim e Moscou. Por trás da aparência leve e divertida do pop sul-coreano, o gênero quebra paradigmas e oferece um discurso social de como o Cazaquistão pode ser cazaque sem ser russo, masculino e não masculinizado, autêntico embora influenciado. Com coragem de ser livre: Q-Pop!


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).


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