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GUERRA CÍTRICA

Filme da Estônia indicado ao Oscar é antiguerra, antiglória e anti-herói. Um resgate da esquecida Guerra da Abecásia.


Por FELIPE VIVEIROS*


Os filmes – muito além de entretenimento – mudam as formas de entender um país, um povo, uma condição social, um conflito. Mudam nossa posição na sociedade. A sala de cinema é como um sensível camarim. Entramos espectadores e saímos cidadãos. Quando frequentamos o mesmo camarim, corremos o risco de usar a mesma roupa, a mesma maquiagem, o mesmo penteado de cabelo. Pasteurizar a imagem. Corremos o risco de estarmos preparados para entrar em uma única e mesma cena. Quando se trata da indústria dominada pelas produções de Hollywood, as grandes histórias são contadas por um só país. Ou omitidas por ele. A grandiosidade do mundo não interessa aos EUA. Se o cinema é a tela da vida, há 195 países prontos para entrar em cena. Um deles é a Estônia com o filme Tangerinas (2013).


“O cinema é uma grande fraude” é uma das frases da produção que aborda, de maneira tragicômica, conflito e reconciliação na Guerra da Abecásia. Dirigido, produzido e escrito pelo cineasta georgiano Zaza Urushadze, o filme é um conto de moralidade, um despertar humano em meio à violência que assolou a Europa Oriental. Ele revela compaixão como resposta a séculos de conflitos políticos, culturais e étnicos na Geórgia. Uma abordagem antiguerra, antiglória e anti-herói. Em Tangerinas o vencedor é o mediador. Não por acaso, a produção tornou-se a primeira da história da Estônia a receber uma indicação ao Oscar.


A trama situa-se em 1992, durante o conflito entre a Geórgia e Abecásia. Entre os desterrados, estavam muitos estonianos que viviam na região, mas que fugiram por questões de segurança. Apenas alguns permaneceram. Ivo, um carpinteiro idoso, e Margus, dono de um pomar de tangerinas. Um faz caixas para a colheita do outro. Margus anuncia: “Eles estão lutando pela terra. A mesma terra onde crescem as minhas tangerinas. Esta é uma guerra cítrica.” Estava certo. Em um dia de trabalho, os dois estonianos são pegos de surpresa pelo fogo cruzado entre grupos rivais. Dois combatentes sobrevivem. Ahmed, um mercenário muçulmano checheno que luta pela Abecásia, e Niko, um voluntário cristão que luta pela Geórgia. Ambos, gravemente feridos, são colocados em quartos separados na casa de Ivo.


foto: divulgação


Os combatentes que antes tinham tentado matar um ao outro como inimigos, são forçados a “lamber suas feridas”, lado a lado, sob o olhar conciliador de Ivo. À medida que se recuperam, são consumidos pelo desejo de tirar a vida do outro. Margus estava certo, a guerra é cítrica. Saborosa para alguns, as tangerinas – assim como o conflito – têm sabor ácido e safra indeterminada. Os soldados rivais, sob o mesmo teto, trazem a lógica do conflito militar para dentro da casa e da simplicidade pacifica de Ivo e seu amigo. Os combatentes feridos estão insuflados de ódio nacionalista e religioso. É o sentimento de gratidão deles a Ivo – salvador de suas vidas – que traz equilíbrio político na casa.


O cineasta georgiano Zaza Urushadze apresenta a insanidade da guerra de maneira “compacta”. O território político é a casa de Ivo, seu quintal, a plantação de tangerinas de Margus e os três povos que agora habitam o lugar: os estonianos, o checheno e o georgiano. A mensagem do filme não acontece nas cenas épicas de batalha, como nas películas de Hollywood. É um filme de guerra contra guerra. Ivo dedica-se a cuidar dos combatentes e de amenizar a crescente tensão na sua casa. Não se trata de um lar, mas de um enclave político. Ivo deixa claro a importância do seu papel de mediador: "Ninguém pode matar ninguém em minha casa... A menos que eu queira que isso aconteça". O carpinteiro estoniano é a personificação do cansaço mundial. Tolerância não basta, é preciso ter compaixão. A trégua é desconfortável aos que sentem conforto na guerra. Ideologias opostas só diminuem de importância quando abraçadas.


foto: divulgação


A trama aborda um tema que tem sido recorrente desde que a União Soviética, em 1991, se desmembrou em 15 países. Com o seu colapso, os abecásios que viviam na parte oeste da Geórgia declararam independência, gerando a guerra civil. A Rússia, ressentida com a dissolução de suas antigas repúblicas, ficou do lado dos abecásios e incentivou mercenários, como Ahmed, a lutar contra os georgianos como Niko. Colocar a culpa do conflito na política soviética seria enganoso. De qualquer modo, a carga social que os conceitos de nacionalidade e etnia acumularam durante o período de formação dos novos países culminou em diversas guerras civis na Eurásia. Entre o colapso socioeconómico e a instabilidade política emergem as tensões étnicas. E a resolução do conflito não é fácil. Hoje a “República da Abecásia” continua como questão não resolvida para a Política Internacional. O território, reconhecido como autônomo pela Rússia, ainda é entendido pela maioria dos estados membros da ONU como parte integrante e legal da Geórgia.


O conflito tem arrepiado as telas do cinema georgiano. Filmes como The Machine Which Makes Everything Disappear (2012) e In Bloom (2013) revelam como a guerra nunca é vista de maneira direta, mas sentida nas finas e ásperas camadas da sociedade georgiana. Os milhares de mortos continuam vivos. O ineditismo de Tangerinas não está apenas em sua visão diplomática e mediadora do conflito, mas em um resgate etno-cultural esquecido: os centenas de estonianos que viviam na Abecásia desde o século 19 e que foram forçados a fugir para uma "pátria" que nunca haviam conhecido. Eram estonianos étnicos de alma georgiana. Deixaram a escuridão da Estônia na Geórgia para nunca encontrar a claridade da Geórgia na Estônia.


Em Tangerinas, acontece uma guerra dentro de uma casa, o pomar é zona de conflito e símbolo colorido do cinzento cenário que, até agora, mereceu pouco atenção da comunidade internacional. Na Abecásia dos anos 1990, os homens do campo colhem tensão no silêncio da guerra. Quase três décadas depois de um dos mais sangrentos conflitos pós-soviéticos, Tangerinas traz o legado da “política de nacionalidade”, é um lembrete de como a etnia chegou a superar todos e quaisquer marcadores de identidade. Ivo não tenta apenas parar os dois inimigos de guerra porque tem medo da morte, ele sabe como é grande essa dor. Ele quer, muito além disso, curá-los da absurda xenofobia, do distorcido orgulho nacional. Na guerra cítrica, o carpinteiro Ivo não faz caixas para as tangerinas. Faz caixões para os mortos.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).


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