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FAROESTE CURDO

Filme iraquiano My Sweet Pepper Land retrata, com caubóis, humor e romance, a região autônoma do Curdistão.


Por FELIPE VIVEIROS*


Mais de 30 milhões de pessoas habitam uma região montanhosa que se estende pelas fronteiras da Turquia, Iraque, Síria e Irã. Descendentes diretos dos povos da Mesopotâmia, sua origem ainda é pouco conhecida embora os seus ancestrais tenham habitado o mesmo território por milênios. Uma nação que viu, de perto, uma longa lista de invasores e conquistadores, de persas antigos à Alexandre “o Grande”, de árabes muçulmanos a mongóis, otomanos e até mesmo norte-americanos no século 21. As referências históricas dessa população são constantes, não só pelo seu valor cultural como também pela sua grandiosidade. Os “povos das montanhas” tem nome. São curdos, a maior nação do mundo sem Estado.


A história curda está interligada à geografia e à política das regiões curdas modernas. Ao longo dos séculos, diversas etnias migraram, estabeleceram-se e habitaram a área. É por isso que, enquanto o Curdistão é conhecido por sua forte unidade cultural, é também o lar de diversas línguas, religiões e facções políticas. As fronteiras que foram traçadas após a Primeira Guerra Mundial refletem as divisões ao longo das curvas da Ásia Ocidental. Os curdos chamaram as antigas montanhas da Mesopotâmia de lar e, ao longo de sua história, foram forçados a se deslocar para longe dos próprios ventos que cortam as rochas.


Após a Primeira Guerra Mundial e a derrota do Império Otomano, os vitoriosos aliados ocidentais previram a criação de um Estado Curdo com o Tratado de Sevres, em 1920. Tais esperanças foram frustradas três anos depois, quando o Tratado de Lausanne – que estabeleceu as fronteiras da Turquia moderna – negligenciou a criação desse Estado. O quarto maior grupo étnico do Oriente Médio recebeu o status de “grupo minoritário”. Durante quase 80 anos, desde o final da Primeira Guerra Mundial até a Guerra do Golfo em 1990, os curdos na Turquia, Irã, Iraque e Síria lutaram em guerrilhas para alcançar a autonomia. Depois de décadas de combate e repressão, as populações curdas foram reconhecidas apenas no Irã e no Iraque. Os curdos do noroeste do Irã habitam a província de Kordestan e os curdos no norte do Iraque estabeleceram sua própria “Região Autônoma do Curdistão”, como traz o filme iraquiano My Sweet Pepper Land (2013).


foto: divulgação


My Sweet Pepper Land não é um filme padrão. É um conto de inspiração ocidental que tem, nas mãos do diretor Hiner Saleem, o sarcasmo e o exagero como principais instrumentos de guerrilha curda. Um verdadeiro filme de caubóis, ambientado na fronteira do Iraque com a Turquia, que retrata, com humor, “o novo Curdistão”. A sequência de abertura dá o tom ao filme. Saddam Hussein foi deposto e o primeiro enforcamento da região autônoma do Iraque é descarrilado por um equipamento defeituoso. O protagonista Baran, policial e ex-combatente da resistência curda, assiste ao constrangedor momento. A autonomia de sua nação foi conquistada, mas a conquista não é autônoma quando depende dos mesmos mecanismos de repressão. No vácuo deixado pelo colapso da ditadura de Saddam Hussein, ninguém sabe como realizar o enforcamento. Se o criminoso não morre, é o mecanismo de força quem se enforca no Curdistão.


Baran entrega seu distintivo e, já em idade madura, retorna à casa para morar com a mãe. O retorno, no entanto, é breve. A genitora quer ver o filho casado. O homem, para ficar o mais longe possível da matriarca, pede transferência para uma delegacia “esquecida por Deus” na fronteira com a Turquia. O cenário rochoso, inóspito, mas de perfeita fotografia, relembra as locações usadas por Sergio Leone na trilogia Man with no Name. As expressões do ator Korkmaz Arslan, que interpreta o protagonista Baran, acenam na direção de Clint Eastwood. A comparação que o diretor faz entre o Wild West dos EUA e o terreno montanhoso do norte do Iraque pós-Saddam Hussein é uma comparação atrevida... E fascinante. A ordem no “novo Curdistão” – do mesmo modo que a ordem dentro das fronteiras norte-americanas – só chegou após anos de (des)aplicação da lei. Uma terra onde aqueles que herdaram o manto da liderança ainda estão lutando para descobrir a forma que o “mundo novo” deve tomar.


Baran pensava que, com a queda de Saddam Hussein, tempos de paz chegariam aos curdos. Foi surpreendido. A autonomia do Curdistão frente ao Iraque não garante que a região não sofra com a interferência dos poderosos informais. Baran percebe que, embora seja o xerife designado, não dispõe de credibilidade e respeito. É o mafioso Aziz Aga quem decide se a vila vai (ou não) impor a lei do Curdistão. Curdos turcos vêm buscar armas e os curdos iraquianos contrabandeiam álcool. Não restam dúvidas de que uma guerra ainda é travada entre as velhas forças conservadoras, cuja única preocupação é a manutenção do poder. A autonomia da região no Iraque é a primeira camada da mamushka da política, na qual Estados existem dentro de Estados no Curdistão.


Embora o filme seja divertido, uma mensagem séria está nas entrelinhas. O longa explora temas como o desapego e a liberdade. Não apenas de Saddam Hussein, mas principalmente do juízo moral da sociedade. O mafioso, embora curdo, não compartilha dos mesmos valores do herói de guerrilha que também foge da legalidade – mas, de maneira ética. Baran oferece apoio às mulheres curdas que lutam por liberdade na Turquia, e dá cobertura clandestina no lado do Iraque para que elas consigam suprimentos médicos. O novo xerife ajuda as companheiras turcas porque sabe que os curdos, tanto na Turquia quanto no Iraque, sofreram brutal repressão de seus governos. A pressão para assimilação cultural é tão rarefeita quanto o ar que circula pelos cumes das montanhas da região.


foto: divulgação


Os curdos da Turquia receberam um tratamento repulsivo por parte do governo, que tentou privá-los de sua identidade, designando-os "turcos da montanha", proibindo sua língua e suas vestimentas nas cidades administrativas importantes. Já no Iraque, entre março e agosto de 1988, forças oficiais do país procuraram reprimir a resistência curda, fazendo o uso de armas químicas contra civis. Um dos ataques mais infames ocorreu na vila de Ḥalabjah, onde tropas iraquianas mataram 5.000 curdos com gás mostarda e agente nervoso. Um crime contra a humanidade.


Em My Sweet Pepper Land, o herói da resistência não é o único ideólogo nas vilas remotas do Curdistão. A professora Govend, também ensina a população a ler valores e escrever ética. Contra a vontade de seus 12 irmãos, ela vive sozinha no vilarejo e dorme na escola. Depois de sofrer preconceito por ser a única mulher solteira da vila, sob risco de violência a jovem se refugia na delegacia de polícia, o que leva os habitantes conservadores a espalharam rumores maliciosos sobre ela e o xerife. A professora rapidamente se torna alvo da gangue de Aziz Aga, que humilha e debocha da “imoralidade da mulher independente”.


Verdadeiro filme de faroeste pelas lentes do Curdistão, My Sweet Pepper Land se adapta a um gênero cinematográfico típico Ocidental e antes inexplorado no Iraque. Os descendentes diretos dos povos da Mesopotâmia ainda não tiveram a chance de serem ouvidos – embora tenham habitado o mesmo território por milênios. Os curdos iraquianos foram capazes de estabelecer um porto seguro que inclui as áreas no norte do Iraque, onde o Partido Democrático do Curdistão Iraquiano e a União Patriótica do Curdistão criaram uma autoridade civil autônoma que – em sua maioria – está livre da interferência do governo iraquiano. My Sweet Pepper Land revela que o Curdistão pode não ser um Estado independente, mas mostra pleno estado de independência no cinema.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).


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