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CORPO E ALMA

Vencedor do Urso de Ouro, filme húngaro revela a complexidade das relações sociais.


Por FELIPE VIVEIROS*


Premiada com dois Oscars nos últimos cinco anos, a indústria cinematográfica húngara está em alta na comunidade internacional. O longa "Filho de Saul" conquistou a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro em 2016 e, a produção "Mindenki, levou o prêmio de Melhor Curta-Metragem em Live Action para o país da Bacia dos Cárpatos.


O cinema húngaro, embora não seja sempre uma estrela no tapete vermelho europeu, vem acumulando vitórias e prêmios em festivais em diversos cantos do mundo. Nação que valoriza a cultura, sua indústria tem se beneficiado de amplo apoio estatal, equipes técnicas qualificadas e ideias novas de engajados diretores e roteiristas. O resultado do investimento? Produções cinematográficas originais de alta qualidade, visibilidade internacional e propostas inovadoras, como é o caso do longa Corpo e Alma; filme candidato da Hungria ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2018, e ganhador do Urso de Ouro do Festival de Berlim.


É comum ouvir dizer que o cinema é a linguagem dos sonhos. Um matadouro não é necessariamente o cenário mais romântico para se imaginar uma história de fantasia e medo. Essa é a originalidade da roteirista e diretora Ildikó Enyedi ao misturar fábula com escuridão. Corpo e Alma é uma história de amor que se desdobra tanto em uma secreta paisagem de sonho interior, quanto em um mundo exterior de aparente normalidade. O filme retrata a vida de duas pessoas que trabalham em um matadouro e descobrem partilhar dos mesmos sonhos noturnos em diferentes casas, embora tenham dificuldade de se conectar durante o dia na vida comum no mesmo emprego.


Endre interpretado, por Géza Morcsányi, é o diretor financeiro do estabelecimento, um homem de meia-idade com um braço deficiente e jeito observador. Maria, interpretada por Alexandra Borbély, é a nova inspetora do controle de qualidade, jovem de comportamento autista, de incrível capacidade de memorização, alto grau de T.O.C. e fobia social. A moça opta sempre por uma mesa isolada na intervalo de trabalho, e almoça em silêncio. A interação dos dois acontece só pelo olhar, até descobrirem que partilham dos mesmos sonhos enquanto dormem. Maria tem receio de contato físico, mas vive diariamente em meio a brutalidade no abatedouro. O contato humano a incomoda e o massacre com as vacas é algo que não a sensibiliza. Pelo contrário, é extremamente metódica e rigorosa nos processos que envolvem o controle de qualidade.


foto: divulgação


A originalidade da produção húngara se encontra nas metáforas que surgem em uma suposta apresentação de elementos, na qual o coautor da narrativa, é você–o espectador. O filme apresenta uma sequência inicial com um casal de cervos que corre juntos por uma floresta nevada. A brisa sopra no topo dos pinheiros, os olhares dos cervos se cruzam. O sonho acaba, amanhece o dia. A vida segue sem vida no abatedouro.


Endre e Maria, de modo lento e gradual, começam a se apaixonar e a descoberta do sonho comum de cada noite faz com que os dois busquem aproximação na vida real. Cada um vive dentro de sua própria caixa fechada de afeto, são os sonhos noturnos que aproximam os corpos até então isolados. O filme parece simples, mas aborda a complexidade das relações humanas, as dificuldades de quem se distancia emocionalmente. Uma leitura metafórica do difícil processo de construção dos relacionamentos. Maria, nas imagens de cada noite, é livre como cervo e tímida e introspectiva ao acordar. O sonho real é o que faz os dois conversarem nas entranhas solitárias da vida, porque interagir socialmente é algo que faz o ser humano sair da zona de conforto. A experiência se torna um ensaio para tomar coragem e se abrir, física e emocionalmente, ao outro quando eles acordam a cada nova manhã.


Corpo e Alma lida com conexão genuína. Ainda que cervos no sonho, é a fantasia a forma segura de correr riscos no cotidiano. A obrarevela o duro processo de enxergar a alteridade como algo amável e, deixa claro, que a dualidade entre corpo e alma coexiste na brutalidade do matadouro das nossas vidas práticas e na sensibilidade quase poética de um sonho a dois.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).



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