Filme mauritano "Timbuktu" oferece humanismo em resposta à intolerância extremista no Mali.
Por FELIPE VIVEIROS*
"Informações importantes! Informações importantes!", ecoa o alto-falante pelo seco ar da cidade no deserto. "É proibido fumar, é proibido fumar!". Esse é o anúncio dos jihadistas recém-chegados à cidade de Timbuktu, no Mali, palco do filme de mesmo nome do diretor mauritano Abderrahmane Sissako. O aviso dos fundamentalistas prepara o povo da cidade e–os espectadores–para uma tragédia surreal baseada eventos reais.
Em 2004, um relatório da ONG Freedom House classificou o Mali como um país "livre" entre as 47 nações de maioria muçulmana. Assim como a cidade de Timbuktu, todo o território malinês cultivou tolerância religiosa e manteve uma democracia secular ao longo da história. A região presenciou, até mesmo, uma candidata feminista à prefeitura de Timbuktu, e o próprio ex-presidente da nação subsaariana, Amadou Toumani Touré, já deixou claro que "O Estado nunca se envolveu como assuntos de religião, o que permitiu a existência de um país estável e pacífico." Esse é o pano de fundo de“Timbuktu”, um filme que toma de assalto, e surpreende, a própria realidade histórica da região.
Em julho de 2012, quando a maior parte do mundo voltava o olhar para os Jogos Olímpicos de Londres, um homem e uma mulher foram raptados em Aguelhok, norte do Mali. Aprendidos pelo grupo islâmico Ansar Dine ("Defensores da Fé"), o casal (pais de dois filhos), foi enterrado até o pescoço e apedrejado até a morte. Por que sofreram tal castigo? Nunca foram casados perante os olhos de Deus. No começo de 2013, o diretor Sissako começou a trabalhar em um longa que denunciasse a tomada da cidade pelos jihadistas. A ideia era filmar em Timbuktu, mas durante os meses que seguiram, o grupo fundamentalista Ansar Dine havia avançado pelo Mali. Pouco antes de começar as filmagens, houve um ataque-bomba próximo ao aeroporto. A produção do filme, então, se deslocou para a Mauritânia com o exército local protegendo o elenco e a equipe de filmagem em Walata, e em outras cidades mauritanas.
“Timbuktu”, portanto, foi filmado na Mauritânia, mas trata o regime islamista imposto à cidade malinesa por militantes fundamentalistas. O roteiro é intenso, assim como as imagens do filme. O longa havia sido planejado para ser um documentário, mas Sissako declarou que isso seria impossível enquanto a maioria dos jihadistas estivesse à solta. Não se poderia fazer um documentário no qual as pessoas não têm liberdade para falar, e o maior risco seria fazer um filme para os próprios jihadistas. Afinal, são eles os únicos detentores de liberdade.
foto: divulgação
“Timbuktu” tem atraído os olhos da imprensa internacional desde a sua estreia, em 2014, no Festival de Cannes. O filme mereceu uma indicação ao Oscar e conquistou sete prêmios César (equivalente francês ao Oscar), incluindo o de Melhor Filme e de Melhor Diretor. O cineasta Sissako está consciente de que a jihad moderna é uma ávida realizadora de filmes e, ele mesmo, oferece humanismo e graça em resposta à selvageria. O cineasta, que nasceu na Mauritânia, e cujos filmes foram montados principalmente no Mali, examina as diversidades deste absurdo com um toque brutal de calma. A sequência de abertura, com uma gazela fugindo e estátuas históricas sendo destruídas por tiros de extremistas, mostra como a natureza, a tradição e a arte estão em risco constante na mãos dos que acreditam ser possível apagar o passado com "superioridade".
Os habitantes de Timbuktu são poliglotas, multiétnicos e observam seus prazeres diários e liberdade serem reduzidos por estranhos de língua francesa, árabe e inglesa, conhecedores de um Islã supostamente "melhor". Os guerreiros de Alá são indiferentes aos costumes locais e ignoram muitas das línguas faladas pelos residentes de Timbuktu, um antigo centro comercial conhecido por seu cosmopolitismo de origem bambara, songhay e tamasheq.
Sissako faz um retrato perfeito da hipocrisia dos jihadistas. Discutem sobre seus times de futebol favoritos enquanto proíbem o futebol; também proíbem fumar, mas fazem pausas para acender um cigarro. Os vícios dos fundamentalistas são mais fortes do que os princípios de sua ideologia. O som dos tiros também rege um novo ritmo, enquanto a música vai para a clandestinidade.
A cantora malinesa Fatoumata Diawara empresta sua voz e atuação ao filme, mostrando como pequenos atos de resistência compõem a forma como a população de Timbuktu tenta sobreviver às rápidas mudanças que acontecem em sua cidade. Membros da Polícia Islâmica invadem sua casa e uma das moças que canta é publicamente chicoteada pelo crime. Todos acabam em tribunais improvisados supervisionados por extremistas, que nem sequer são originários da região ou falam a língua local. Os jovens jogam futebol com uma bola invisível. Tomam dribles, passam e roubam a bola, comemoram os gols em um balé hipotético de jogos apenas sonhados. Imagens poéticas, silêncio assustador.
foto: divulgação
Sissako é, atualmente, um dos diretores cinematográficos mais respeitados da África. Ele deixa bem claro que as questões de causa e efeito são complexas e nunca devem ser respondidas de maneira simplista. Embora enfrentando a intolerância extremista e, às vezes, a injustiça assassina, Sissako evita uma caracterização superficial. Até mesmo os jihadistas são retratados como inteligentes e preparados, até certo ponto, para escutar. É a ideologia e a falta de consciência do sofrimento humano que se interpõem no caminho.
"Timbuktu" retrata o belo e o brutal, não da cidade tida com o depósito do saber, das mesquitas de barro e dos manuscritos antigos, mas como um lugar sombrio e de medo. O filme mapeia uma região oprimida por meio do que poderíamos chamar de "topografia emocional". A cidade antiga, com suas estreitas ruas de areia e modestos edifícios de arenito, é um labirinto físico e político. São muitas as pessoas que criticam o cinema africano por não abordar algo artístico ou de criatividade desatrelado ao passado colonial, ou de mensagens sociopolíticas. É preciso lembrar que as regras impostas pelo grupo islamista Ansar Dime parecem absurdas, e não apenas para os frequentadores de cinema. Este é, também, o sentimento dos residentes de Timbuktu.
Sissako faz no seu filme o que as artes devem fazer: não se limita a entreter, ensina e provoca reflexão.
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