Filme da Bolívia deixa claro que ser empregado doméstico nos Andes, não é um embate social. Mas, étnico.
Por FELIPE VIVEIROS*
Há, na América Latina, uma figura comum às famílias de classe alta do continente: a do empregado doméstico. Geralmente retratado como entidade silenciosa e privada de discurso, o empregado doméstico lava pratos, esfrega pisos e arruma a casa enquanto as elites latino-americanas trabalham para “uma mudança efetiva no futuro de seus países”. O filme Roma (2018) atraiu os olhos do mundo ao contar essa história pelas lentes do México. Dirigido por Alfonso Cuarón, a produção ganhou o Oscar, o Globo de Ouro e os Prêmios BAFTA... Mas, não trouxe nada novo. Quase 10 anos antes, a Bolívia já lançava luz a essa mesma realidade com o filme Districto Sur (2009). Não mereceu atenção. E não surpreende o porquê. Em um continente que preza pela ascendência europeia, o filme saiu de um verdadeiro “país de índios”. Na Bolívia, 88% da população tem ascendência indígena.
“Cinema boliviano?” Indagariam os latino-americanos em mais alto tom de surpresa. Ao contrário do que muitos imaginam, a Bolívia tem uma rica história cinematográfica e produz filmes desde os anos 1920. Enquanto o Cinema Novo no Brasil e o Tercer Cine na Argentina examinavam a luta econômica e o subdesenvolvimento nos anos 1960, o Cinema Novo Boliviano buscou definir uma identidade nacional. O país mais indígena da América Latina, não só fez como seus vizinhos argentinos e brasileiros – ao rejeitar o estilo cinematográfico de Hollywood – como se dedicou integralmente às questões políticas e culturais dos seus próprios povos nativos. O líder do movimento, o cineasta Jorge Sanjinés, dirigiu sucessos como Yawar Malku (1969) e La Nación Clandestina (1989) e examinou, com riqueza de detalhes, o tratamento histórico e atual dos povos que têm impressos na alma a nobre herança indígena. Aos que não têm voz nas ruas, o som das telas é fundamental.
Ao longo da história do cinema boliviano, diversos cineastas lutaram contra a censura das autoridades governamentais e a crítica da mídia. A elite do país não é inocente. A sociedade boliviana não tem suas origens no Velho Continente. Floresce no solo das mais desenvolvidas civilizações pré-colombianas da América do Sul, edificadas pelos antigos Impérios Tiwanaku e Inca. O “alto planalto boliviano” já era densamente povoado vários séculos antes da conquista espanhola do século 16, quando a população local foi forçada a trabalhar em minas de prata montadas pelos invasores espanhóis. A história é dura, mas a matemática é simples. A minoria social da Bolívia é a maioria de seu povo. Por décadas as autoridades temiam que o cinema nacional incitasse os povos guarani, quechua e aymara a tomarem o que é seu por direito. Se a Espanha e os seus descendentes enriqueceram, o fizeram aos custos da deusa andina Pachamama e os descendentes dessa “Mãe Terra”. Manter o cinema boliviano no radar é um ato político, como mostra o filme Districto Sur (2009).
foto: divulgação
Do diretor Juan Carlos Valdivia, o longa-metragem se passa no bairro mais sofisticado da capital La Paz, verdadeiro enclave de descendentes europeus que tem abrigado a elite do país há gerações. Em um castelo de estilo espanhol, a matriarca reina junto aos seus filhos mimados e os seus empregados indígenas. O filme é um preciso conto político do cotidiano, no qual as câmeras giram de modo contemplativo. O estilo gera um efeito de “redundância de espaço” e deixa clara a impossibilidade de alcançar o exterior quando o interior é uma bolha. O lar é um modo de vida, uma estrutura social hierárquica.
No topo da hierarquia está Carola, mãe endividada de uma família de três filhos. Patrício, o mais velho, tem como única preocupação divertir-se com a namorada e os amigos. Sua irmã Bernarda, por outro lado, é constantemente incomodada pela mãe, por ser mulher e lésbica. O pequeno Andrés, o mais novo, é único que se movimenta sem preconceitos entre o mundo dos empregados e o mundo de sua família. Ele é o fio condutor do roteiro. Todos vivem junto aos dois empregados indígenas, de origem aymara, o mordomo Wilson e a governanta Marcelina. A casa, de arquitetura colonial e espaços extravagantes, é protagonista da película. Com a câmera rotativa, conhecemos todos os cantos e aposentos, testemunhamos encontros proibidos, confidências, conversas públicas e íntimas dos personagens. Não há nada mais político do que o cotidiano visto em 360º.
Os conflitos étnicos e de classe são percebidos, de maneira astuta, através da relação entre empregados e patrões. Os personagens são representados no filme como “cholos” e “jailones”, denominações que mediam os grupos socioculturais da Bolívia. A palavra “cholo” refere-se à população urbana mestiça, grupo social "ambíguo" que se situa entre os códigos da elite branca e as regras do mundo andino. Por outro lado, a palavra “jailón” indica um status socioeconômico elevado, baseado de modo especial na aparência e no comportamento. Um boliviano de ascendência europeia pode parecer membro da classe social privilegiada, sem ter a correspondência econômica necessária. O contrário não acontece.
foto: divulgação
Entre os principais personagens “cholos” estão Wilson e Marcelina. Eles são empregados da casa e não correspondem ao universo social e cultural dos membros da família. A língua aymara, com a qual se comunicam, recria um ambiente “cholo”, trazendo a rua para a casa – a Bolívia para dentro da Europa. Marcelina expressa sua condição de indígena vestida com traje típico dos Andes. Tal afirmação de identidade é complementada por uma atitude autônoma, que garante que sua condição de trabalhadora seja respeitada. Wilson, por outro lado, está muito mais integrado no melhor estilo latino-americano: “Como se fosse da família”. A matriarca Carola, depende da ajuda financeira de seu ex-marido – que não aparece. O único “homem da casa” é o criado Wilson, que desempenha um papel fundamental na organização da casa, mas, claro, não figura nos estratos sociais.
Filmado durante um período em que Evo Morales – o primeiro presidente aymara da história da Bolívia – estava chegando ao poder, Districto Sur oferece uma provocação social ao que foi conhecido de modo coloquial como "apartheid boliviano". Em um continente que preza pela ascendência europeia, o “país de índios” marca sua contribuição para o cinema. Enquanto os espaços do Districto Sur proporcionam encontro “com o outro”, a ideia de identidade está conectada ao interior da casa. É dentro dela onde o modo de vida de elite se constitui: a língua espanhola, personagens com traços europeus e posições sociais delimitadas. A rua representa os valores do outro como a língua aymara e as fisionomias andinas. Districto Sur deixa claro que ser empregado doméstico na Bolívia não é um embate social. É um embate étnico entre os descendentes dos que trabalharam nas minas de prata espanholas e os descendentes que enriqueceram com o seu trabalho. O privilégio é como o vidro que reveste a casa: protetor, frágil e transparente.
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