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A LÍNGUA DOS VENCEDORES

Navy, cantora de Dominica, canta e encanta em língua crioula. Sotaque caribenho derruba estereótipos sociais e raciais.


Por FELIPE VIVEIROS*


Qual o papel do sotaque? Embora muitas pessoas, por pressão social, optem por uma pronúncia neutra – que denomina-se “neutra”, mas que goza de prestígio – o sotaque escapa nos momentos de mais espontaneidade e emoção. É ele que lembra você e seus antepassados de onde vieram. Uma digital de sua voz, uma identidade sonora.


Durante muito tempo a maioria dos imigrantes caribenhos sentiram-se constrangidos por seus sotaques em países de língua inglesa. Os caribenhos foram, durante séculos, corrigidos em sua pronúncia, ridicularizados pelo mundo por falar de modo “errado”. Quando não soam como os americanos, canadenses, australianos e britânicos, suas vozes se tornam um espetáculo de condescendência. Precisam, de maneira constante, trocar de códigos para serem bem-vindos, bem recepcionados, bem (cor)respondidos. Não importa o que dizem, mas como dizem. Podem ser os mais educados da universidade ou do trabalho, mas seus sotaques são recebidos como estereótipos raciais de incompetência. Já não mais. É isso que mostra a música da compositora Navy.


Nascida em Dominica, a artista é página viva da história de seu povo. Desde muito cedo, a jovem participava da força dos corais, tocava a brisa do piano e entendia o lamento do violino. Aos 15 anos, começou a compor e cantar. Crescer no Caribe a moldou como artista. Em Dominica – como em vários outros países da região – o rádio fica ligado o dia inteiro, seja em casa, no carro ou em qualquer estabelecimento público. A compositora acostumou-se a ouvir gêneros diferentes de todas as épocas. Influenciada pela música haitiana e jamaicana, pelo pop rock e música alternativa, Navy é a espiritualidade de Bob Marley na voz pop punk de Paramore, é a rainha Aretha Franklin no show britpop de Oasis.


foto: divulgação


Conhecida como mulher vanguardista, sua sonoridade é a África e a diáspora em diálogo moderno de R&B e Hip-Hop. Com um estilo novo e marcantes influências de ritmos caribenhos como reggae, soca e folclore de Dominica, sua música é um sopro de ar fresco. Na vibração das ondas do mar, o sol ressoa em nossos ouvidos, deixa a mente clara como um céu azul. Um tributo à autenticidade e às raízes caribenhas. Com alcance global e milhões de plays no Spotify e Youtube, Navy canta com seu próprio vocabulário e sotaque dominiquense e, assim, assegura que sua identidade seja parte de sua representação musical. Ela reverbera a língua crioula, a voz dos que não migraram e foram arrancados de seu continente de origem.


No tempo da colonização inglesa, os africanos tiveram que aprender a se comunicar com os outros africanos nas colônias. A maneira mais rápida de fazer isso foi desenvolver uma linguagem simplificada, adequada ao objetivo. Cantar em crioulo é um ato de resistência cultural. Línguas crioulas são consideradas por muitos – e até hoje – como “dialetos rudimentares”. Caribenhos de diversos países, por muito tempo, diluíram a influência africana de seus sotaques e vocábulos para serem “aceitos e melhor compreendidos” nos países para onde imigraram.


Navy tem refrãos inteiros em crioulo e busca captar a atenção dos ouvintes para desmistificar e descobrir mais sobre o idioma. As palavras, expressões e pronúncias misturam elementos das línguas europeias com uma variedade não europeia. Em tempos marcados pela Era Trump e o Brexit, quando xenofobia e deportações são manchetes diárias, é importante ver a alteridade caribenha reconhecida com respeito. A formalização da língua crioula na música e nos ambientes de poder, é um passo para dissociação de estereótipos sociais e classistas. A terminologia dos caribenhos está sendo usada cada vez mais nos EUA, Canadá e Inglaterra por artistas não-caribenhos. O crioulo está sendo realmente aceito, ou é considerado aceitável, quando os não-caribenhos o falam? Com um histórico de hierarquia linguística e discriminação é preciso estar atento ao rebranding cultural. A gentrificação de vozes gera desconforto.


Ao ouvir suas próprias palavras reembaladas como um produto estrangeiro, Navy recupera sua cultura com orgulho. Depois de deixar a Dominica para abraçar o mundo, a artista conquistou sucesso nos territórios franceses, desde Martinica e Guadalupe no Caribe até Reunion e Seychelles na África. Seu sucesso mais cativante, Touch Me (2017) com o artista martinicano JmaX alcançou 20 milhões de visualizações no YouTube. A cantora e compositora dominiquense também tem sido a capa das playlists do Spotify com o groove irresistível de One Shot (2021). Cheia de caráter e com um vocal único, a faixa é puro fervor tropical com sotaque crioulo. Não para por aí. Navy recebeu aclamação internacional com Scorpio's Letter (2020), single de estreia de seu coletivo musical Taste of Pluto, com membros de Barbados.


foto: divulgação


Devido às mudanças sociais, políticas e acadêmicas trazidas pela descolonização na segunda metade do século 20, as línguas crioulas experimentaram uma afirmação nas últimas décadas. Estão sendo cada vez mais usadas na imprensa e na cultura, aumentando o seu prestígio. Foram séculos de “efeito camaleão” sob as normas padrões do inglês e do francês como meio de sobrevivência. Hoje é a cultura pop que, com artistas como Navy, ilumina o palco para os caribenhos, dando-lhes direito ao título de “língua da moda”. É cool falar crioulo. Cantar, então, nem se fala.


O Caribe já não precisa se expressar como britânico, parecer americano, comportar-se como canadense – embora o faça quando tiver vontade. Assim como não é possível mudar a cor de pele, não é possível mudar a cor de sua voz. Cantar em crioulo não é pobre, é mágico. Significa aumentar o vocabulário e racionalizar todas as diferentes estruturas gramaticais. Navy, pela música, revela um sistema linguístico criado por seus antepassados. Mostra o desafio vencido de sobreviver em meio a centenas de línguas africanas e de seus mutáveis colonizadores. O povo de Dominica continuará cantando mais alto e em seu próprio jeito. Fala, sob o sol da liberdade, a língua dos vencedores.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).


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