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FRANÇA NORTE-AMERICANA

Cantora Alexandra Hernandez revela ao mundo o arquipélago de Saint-Pierre-et-Miquelon, a França que habita a América do Norte.


Por FELIPE VIVEIROS*


No restaurante, uma seleção de vinhos, queijos, foie gras, patês e terrines. Na rua, carros Renault, Peugeot e Citroën passeiam pela bela paisagem nua e rochosa, com costas íngremes. Nas lojas – que em sua maioria fecham para almoço – a moeda é o Euro e os clientes descendentes de normandos, bascos e bretões. Do final de junho até o final de agosto, festivais de música, maratonas com cavalos selvagens e piqueniques ao som do acordeão. Um sabor de liberdade! Aqui se comemora o Dia da Bastilha.


Estamos em Saint-Pierre-et-Miquelon, a França que habita a América do Norte.


Ainda não tinha ouvido falar de Saint-Pierre-et-Miquelon? Esta é a hora. O arquipélago, francês, normalmente ofuscado pelo vizinho Canadá, tem cultura do Velho mundo e geografia do Novo Mundo. Não pode ser! Quer dizer então que a França está na América do Norte? Exatamente e apenas a 25 km do Canadá. Banhados pelo Oceano Atlântico, seus residentes são cidadãos franceses, falam francês, têm costumes e tradições semelhantes aos encontrados na França europeia. Aliás, aos que pensam que Saint-Pierre-et-Miquelon é um “primo de Québec” está enganado. Embora a quase 4.000 km de distância da França continental, o francês falado no arquipélago é muito mais próximo ao francês europeu – da Bretanha – do que o francês canadense e reverbera na voz da cantora e compositora Alexandra Hernandez.


Ela é norte-americana, mas europeia. É miquelonesa, mas francesa. Saint Pierre-et-Miquelon é composto por oito ilhas, das quais apenas duas são habitadas. Fazem parte do extremo nordeste das Montanhas Apalaches, na França norte-americana. Nascer em Saint-Pierre-et-Miquelon é estar em uma posição geográfica e cultural inédita, entre mundos. A cantora-compositora é uma verdadeira viagem entre terra e mar, entre o povo norte-americano e a tradição francesa, entre os sentidos do ouvinte e a voz do arquipélago.


fotos: Explore France / Agence Française de Développement


Ainda jovem, aos 18 anos, Alexandra Hernandez deixou os piqueniques ao som do acordeão para dedicar-se ao som da cidade grande em Montreal, Canadá, onde estudou saxofone por cinco anos. Após a faculdade, seguiu para a França do lado oposto do Atlântico, onde se encantou com o violão e começou a escrever as próprias histórias de Saint-Pierre-et-Miquelon. As letras e a maneira de cantar são cuidadosamente trabalhadas, comoventes, sinceras e melodiosas. Orgulhosa representante da Nova França nas Américas, a compositora e saxofonista sempre buscou explorar temas relacionados a seu território, embora sua identidade e tonalidade musical sejam um fois gras policultural.


Com dois álbuns de estúdio, Ma Tranqu'île (2009) e Lula-Rose (2012) a cantora destaca suas raízes francesa, norte-americana e miquelonesa que se entrelaçam em um arranjo só, como sua identidade que não se limita a uma, mas soma três identidades. A artista leva a música para além das curtas ondas do Atlântico, que separam a França do Canadá. Fortalece os laços entre o pequeno arquipélago e os seus vizinhos canadenses, como se pode ouvir na canção Vers le Nord, que dá vislumbre ao seu repertório.


Talentosa, Alexandra Hernandez consegue irradiar sensibilidade em sua voz. O álbum de estreia Ma Tranqu'île (2009) embala a nostalgia nos caminhos históricos e nas fantasias da vida, tendo a mulher miquelonesa como fio condutor de identidade. O ritmo caloroso, entre jazz e country, coloca a França, Québec e as ilhas nativas à bordo de um mesmo navio, rumo a um continente comum, a terra firme do intercultural. A nativa de Saint-Pierre-et-Miquelon é uma embaixadora do arquipélago e encontra seu lugar nos palcos da francofonia. A música ultrapassa as fronteiras que separam sua terra natal, a França e a América do Norte, que podem ser ouvidas em perfeita sinergia geográfica.


foto: divulgação


Em 2017 a artista criou o Les Transboréales (Os Transboreais), um festival anual de música que reúne artistas de Saint-Pierre-et-Miquelon, França, Canadá e Guiana. O festival é uma Cúpula Global da Poesia, um encontro da francofonia musical. A experiência desperta os sentidos para a beleza da vida, os ritmos da natureza e o amor. Os espetáculos são itinerantes, os artistas são levados a lugares históricos do arquipélago, como um farol ou um museu-escola. O tempo é suspenso no atípico cruzamento da França com o Canadá, e o evento reabre locais físicos e pontes culturais imaginárias acolhendo cantores e poetas comprometidos com a língua francesa. O calor dos encontros e intercâmbios proporcionam momentos inesquecíveis nas ilhas, assim como a própria história de Saint-Pierre-et-Miquelon.


Em 1536 Jacques Cartier reivindicou as ilhas como posse francesa em nome do Rei da França. Hoje é a França que nomeia o “prefeito” de Saint Pierre-et-Miquelon, representante do governo nacional no território. Com 242 quilômetros quadrados e população de 6.000 habitantes, nomes de ruas não são usados de maneira comum. As direções e localidades são dadas usando apelidos e nomes dos residentes próximos. Saber o nome da rua não faz diferença quando, no arquipélago francês e norte-americano, o endereço está sob as árvores ou junto ao mar. A relação com a natureza é evidente e o festival inova ao sair das paredes convencionais das casas de show. A francofonia supera seus medos e preconceitos e permite uma forma diferente de sentir e entender o que é estar na França de além-mar.


A música de Alexandra Hernandez não vê horizontes, assim como os cavalos selvagens que galopam em Saint-Michel-et-Miquelon. A artista traduz a paisagem nua e rochosa dos Apalaches franceses em doces notas de partitura. Acompanhada por talentosos músicos, Jean Michel Martineau (baixo) e Thomas Hervé (violão), a voz de Saint-Pierre-et-Michelon, combinada ao saxofone, é um verdadeiro sopro de ar fresco em meio a ventania mainstream que flui nos dois lados do Atlântico.


Alexandra Hernandez revela uma poesia nostálgica, colorida de humor, no ar do tempo e na eterna oscilação entre o presente e o passado. O espírito de sua paisagem musical, é amplo, cercado pelas árvores das Landes que vibram o Dia da Bastilha e rodeado pelas nuas e rochosas paisagens que respiram névoa. Alexandra Hernandez é a Joan Baez do além-mar, norte-americana que faz sentir o calor da fria terra de Saint-Pierre-et-Miquelon. Uma francesa que encontra um lugar de tamanho humano e dimensões continentais, miquelonesa orgulhosa de trazer ao público experiência nacional e transnacional, que é nascer na única parte da França que habita a América do Norte.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).


1 Comment


m.cecilio
Mar 25, 2021

Além da trajetória de vida, a qualidade da música da Alexandra seduz... Para mim, conhecer esse cantinho do mundo foi especial e surpreendente. Felipe Viveiros... você escreve bem para caramba!

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