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O TIGRE ASIÁTICO DO HIP-HOP

Rapper Đen Vâu foca nas reflexões sobre a jornada e as experiências da vida, assim como a filosofia que rege a espiritualidade e a política do Vietnã.


Por FELIPE VIVEIROS*


Entre a China, o Laos e o Camboja não são mais as Dinastias Reais, o domínio francês e as divisões políticas que reverberam a vida cultural. País tema da música mundial na década de 1970, hoje não pede a saída das já derrotadas tropas norte-americanas, mas a vitória de novas batalhas. Aos que só acompanham os TOP HITS dos EUA, o rugido das ruas do Bronx ressoa na garganta de um novo tigre asiático que dita o som de um país socialista com mais de 90 milhões de habitantes. Exatamente isso que você leu. É a vez do rap no Vietnã.


O país da antiga Indochina tem uma longa história de adaptação de ideias e instituições aos propósitos vietnamitas. Esse padrão de adaptação já se mostrou evidente nas relações com a China e reapareceu para responder ao desafio do Ocidente, rejeitando a tradição asiática e se tornando comunista para combater o colonialismo. E assim permaneceu. Suas contra revoluções culturais deram impulsos a movimentos artísticos do século 20 que empregaram estéticas ocidentais para promover a renovação social.


A influência chinesa permeou todos os aspectos da cultura tradicional vietnamita, enquanto as influências ocidentais se tornaram fortes somente no século 20. Desde o afrouxamento dos controles econômicos e políticos no final dos anos 1980, o Vietnã experimentou, de maneira paradoxal e ao mesmo tempo, uma maior exposição aos estilos de vida do mundo capitalista e um ressurgimento de suas antigas práticas culturais. O resultado? Uma cultura musical importada e extremamente vietnamita. No país Asiático, o Bronx é a antiga Saigon e antiga Saigon já tem estilo de Bronx. Mas, não se iluda. O rap apareceu pela primeira vez no Vietnã no final dos anos 1990 e não atraiu muitos fãs devido a seu “conteúdo sombrio e violento“ das ruas do Ocidente.


O gênero teve altos e baixos no país. A música não foi bem recebida pelo público quando chegou ao Vietnã pela primeira vez. Suas duras letras sobre violência, drogas e thug life (“vida de gangues”) ainda são temas tabus no país asiático. Antigamente, as conhecidas batalhas de rap faziam uso de “linguagem inapropriada“ aos ouvidos do público local. Nas competições recentes do Vietnã, as regras proibiram os rappers de usar esse tipo de linguajar. A falta de liberdade para falar palavrões, ofender e usar expressões chulas – que é parte integrante da cultura popular – deu às competições de rap visibilidade na televisão estatal, recebendo mais atenção dos telespectadores com poesia e metáforas de cunho “adorável e espirituoso”. A influência da cultura norte-americana levou o rap aos ouvidos vietnamitas, mas não ganhou destaque até que artistas locais começaram a escrever letras com palavras poéticas e metáforas ao estilo Confúcio.


foto: divulgação


Uma das figuras mais proeminentes desse movimento é Đen Vâu, artista mais difundido do Vietnã no Spotify, em 2019. O serviço de streaming chegou ao território há pouco tempo e deu a possibilidade de que rappers desconhecidos sejam, hoje, figuras influentes. Durante sua carreira – que se estendia no anonimato por mais de uma década – Đen deixou de ser um rapper desconhecido para fazer conhecer o rap. Đen Vâu, cujo nome verdadeiro é Nguyễn Đức Cường, nasceu em 1989 em uma família da classe trabalhadora. Presente no cenário underground de Ho Chi Minh, a paisagem urbana de desenvolvimento da sua cidade constrói a paisagem sonora de suas canções. Com milhões de visualizações nas plataformas digitais, o jovem se tornou um ícone para os amantes do rap vietnamita nos últimos anos.


Đen Vâu chamou a atenção do público pela primeira vez com a participação que fez na faixa Dua Nhau Di Tron, da artista pop Linh Cao, que se tornou viral em 2016. Adaptando o rap à cultura local, as letras de Đen fogem de temas como dinheiro, carros e mulheres. O rapper, assim como a filosofia que rege a espiritualidade e a política do país, foca nas reflexões sobre a jornada e as experiências da vida. A letra de suas canções fazem com que os ouvintes sejam personagens de suas histórias. Receita para o sucesso. Seu show na cidade de Ho Chi Minh vendeu mais de 5.000 ingressos em 10 minutos. O single Troi Hom Nay Nhieu May Cuc (em português: “Hoje Está Nublado”) já acumula mais de 25 milhões de visualizações no YouTube, o que é quase um terço da população do país.


foto: vpopwire


Durante a Segunda Guerra da Indochina (1950- 1975), o Partido Comunista tentou moldar o desenvolvimento da música popular moderna, promovendo músicas e temas revolucionários como alternativas às formas românticas e inspiradas no rock ocidental que se haviam desenvolvido no sul, de influência capitalista. Após a reunificação, em 1975, o governo confiscou partituras e fitas cassetes que considerava “deprimentes ou derrotistas”. Mas, claro, a música – como a natureza – encontra seus caminhos. Fitas e discos de bandas ocidentais foram contrabandeados para o país, reproduzidos por milhares e vendidos nas ruas. A música que as autoridades socialistas julgavam ser "decadente" ou "nociva", jamais foi contida no cotidiano do povo vietnamita, que ouvia o resto do mundo nas cafeterias, bares e karaokês espalhados pelas cidades. Censurar o invisível é algo tão difícil quanto a invisibilidade da censura. A música venceu o governo.


Como se observa em outras áreas das artes, as restrições se afrouxaram ainda mais no final do século 20. Um número crescente de artistas começou a cultivar novos sons que misturam elementos de gêneros ocidentais com linguagem e sensibilidade vietnamitas. O que resultou foi uma abordagem "tradicional, mas moderna", da música vietnamita. No século 21, o rap no país é outro. Amor poético e, até mesmo, letras sobre amizade e família tornaram a música acessível a um público mais amplo no país.


Ao contrário de muitos artistas de hip-hop que conquistam a cena com posturas agressivas e dissonantes, Đen prospera em canções que compartilham visões sobre a sociedade vietnamita e as virtudes da sabedoria. Apesar de ser o rapper mais bem pago do Vietnã hoje em dia, o músico é notoriamente reservado sobre sua vida pessoal, como pode ser encontrado circulando pela cidade com trajes simples. Com a fama, faz valer o que dizem suas letras. Mantém-se autêntico. O rugido do novo tigre asiático do hip-hop mostra que a revolução de dentro do país também pode vir de fora. Adorável e espirituoso, é a hora e a vez no rap no Vietnã.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).


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