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PÁSSAROS MIGRANTES

Das ocupadas Colinas de Golan, a banda TootArd não tem nacionalidade. Seu país é a música.


Por FELIPE VIVEIROS*


De acordo com a ONU, ter nacionalidade que ofereça uma identidade oficial e um passaporte é um direito humano. Somos orgulhosos de onde viemos, de como pensamos, do significado que damos a nossa maneira de ser. Falamos sobre música, gastronomia, correntes de pensamento, instrumentos e vestimentas. É assim que enxergamos o que é nosso, o que é parte integrante de nós ou daquilo que nos pertence. É por isso que a geografia, a história, a sociedade, os modelos políticos, as pinturas, os grãos de areia, os carros, as palavras, expressões e até os penteados de cabelo têm nacionalidade. Como pensa um ser humano sem nacionalidade? Difícil de imaginar. É isso que a banda TootArd tem para contar ao mundo. Direto das ocupadas Colinas de Golan, com identidades "indefinidas" e documentos "Laissez-Passer" em razão dos conflitos políticos com Israel, os membros do grupo não pertencem a nenhum país oficialmente, mas trazem sua mais verdadeira identidade na música.


Conjunto criativo formado pelos irmãos Hasan Nakhleh (vocal) e Rami Nakhleh (baixo) e o saxofonista Amr Mdah, TootArd significa "morangos" em árabe. A banda do lendário vilarejo de Majdal Shams aborda a definição de fronteiras da maneira mais descontraída possível. Na confluência do blues do deserto, do rock psicodélico, do reggae e da arab disco, o grupo equilibra esperança e sutis comentários políticos embarcando nas asas da música para voar longe da realidade irônica na qual estão inseridos. Laissez Passer é o nome do segundo álbum do grupo e se refere aos documentos de viagem dados aos sírios de Golan, com nacionalidade "indefinida", e direito de residência permanente em Israel. A faixa de abertura confronta a falta de pátria dos membros da banda: "Sem nacionalidade, sem fronteiras, se me perguntarem sou um músico". Apesar do tema aparentemente melancólico, a canção – e o álbum – são movidos por riffs de guitarra envolventes e batidas alegres que nos levam para uma su(real) viagem sonora que conecta o Deserto do Saara à África Ocidental. A produção é uma declaração da realidade política nas Colinas de Golan, uma clara indicação de que TootArd é maior quando ultrapassa as fronteiras do som.


Seu mais recente trabalho, Migrant Birds (2020) conta com ganchos pop e linhas melódicas que prestam homenagem às pistas de dança do Oriente Médio dos anos 1980. Um funk retrô com sintetizadores que fazem o ouvinte se perder nas cores e luzes das nostálgicas pistas de dança do Oriente Médio dos anos 1980. Com essa proposta, a banda mescla, de maneira cuidadosa, elementos contemporâneos com belos arranjos no violão e viradas de bateria. No clima de festa vintage, a letra sussurra sentimentos típicos da música árabe presentes em canções de luta e baladas tristes de amor. A essência do álbum Migrant Birds, em português Pássaros Migrantes, tem foco centrado na liberdade. Tema que parece natural para muitos, a música do grupo deixa claro que há pássaros que continuam sem ninho. Uma situação que se mantem igual desde a década de 1960, quando Israel ocupou a região.


foto: divulgação


Israel tomou as Colinas de Golan da Síria na fase final da Guerra dos Seis Dias, em 1967. A maioria dos habitantes sírios fugiu durante o conflito, uma linha de armistício foi estabelecida e a área ficou sob controle militar israelense. A Síria tentou retomar as colinas, sem sucesso, durante a guerra do Oriente Médio de 1973. Os dois países assinaram um armistício no ano seguinte, e uma força de observação da ONU desde então patrulha o cessar-fogo na área. Em 1981, Israel anexou de modo unilateral as Colinas de Golan, a medida não foi reconhecida pela comunidade internacional. A resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas declara que "a decisão israelense de impor suas leis, jurisdição e administração nas ocupadas Colinas de Golan é nula e sem efeito legal internacional". A Síria continua a exigir a devolução total da região e nenhum outro país reconheceu as reivindicações israelenses do território, até agora. E lá se vão mais de 50 anos de negociações...


Hasan, o líder da banda, deixou as colinas de Golan para ser um pássaro migrante aos 19 anos. Já morou em Jerusalém, Haifa e em algumas cidades da Europa. Voou em direção à liberdade, embora sua família ainda esteja no vilarejo onde nasceu. Migrant Birds explora exatamente isso, não só no espectro político, como também na distância emocional que separa os pássaros migrantes de um verdadeiro um lar. Seriam as letras de TootArd algo pessoal ou uma crítica à política de Estado? A internet chegou ao vilarejo de Majdal Shams, que pouco a pouco se tornou um centro artístico de contracultura, liderado por uma pequena comunidade de bandas, artistas e intelectuais. Seus habitantes definiram sua própria identidade, como também a paisagem sonora que evoca o anseio dos povos em Estado nas vastas e áridas extensões "indefinidas" de terra.


foto: divulgação


Embora tenham suas raízes em elementos intrínsecos ao Oriente Médio, o som de TootArd é acessível a todos os pássaros ouvintes do mundo. O ritmo dos apátridas desliza pelas fronteiras da África Ocidental, mergulha nas areias do deserto Saara, se move com a ginga caribenha e mantém as tradições das modalidades clássicas árabes. Embora existam cerca de 22 países árabes, TootArd só chegou a quatro deles em razão da falta de passaporte e de seus documentos laisser-passer.


Embora a banda não declare explícito comprometimento político, tanto no som quanto no tema a identidade dos habitantes de Golan revela-se política. Desconectados do espaço musical da outrora vibrante Síria, desligados do espaço cultural israelense e a horas de distância do cenário artístico palestino, os membros do TootArd escaparam de sua inquietação e encontraram na música sua própria identidade. O sentimento de isolamento serviu como impulso às novas gerações de Majdal para definirem sua comunidade "indefinida" à própria maneira. A música vai contra nossa percepção de mundo e revela que é possível ter identidade sem nacionalidade. TootArd é a maior prova de que os habitantes de Golan não são "indefinidos". São definidores.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).



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