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O DIVINO VOTO DAS MULHERES

Filme suíço revela o absurdo “direito democrático” de negar direitos à mulher.


Por FELIPE VIVEIROS*


Chegou a hora de quebrar o tabu. Falar de uma sociedade que protegeu seu status quo por muito tempo. Nação que se articulou contra os movimentos sociais que mudavam o mundo. País que pregou pela tradição, pela moral e pelos costumes e discriminou, com respaldo de sua própria constituição, grande parte de sua população cidadã. Uma sociedade em que, durante séculos, maridos detinham a autoridade legal sobre as economias de suas esposas. Um país em que as mulheres não podiam votar até 1971.


Estamos falando da Suíça.


Pois é... Modelo para o mundo industrializado e desenvolvido, a Suíça pulsa hoje com uma das democracias mais antigas do continente. No país, homens já votavam em 1291. Mas teria sido o coração da Europa tão democrático assim? Os homens suíços, até 1971, exerceram seu “direito democrático” de negar voto às mães, filhas e irmãs. E tiveram tempo para mudar de opinião... Quase 700 anos.


O mito de que a Suíça é uma das democracias mais antigas da Europa data da Idade Média, quando os homens desfrutavam da liberdade para se reunir em assembleia anual e votar, de maneira direta, levantando a mão. A tradição perdurou por séculos. Mas, uma parte indispensável faltou no país que se orgulha tanto de seu modelo de liberdade: a mão feminina. É esse capítulo vergonhoso, varrido para debaixo do tapete de um dos países mais democráticos do mundo, que retrata o filme: Mulheres Divinas.


foto: divulgação


O longa, da diretora suíça Petra Volpe, começa com imagens de agitação social do final dos 1960, período conhecido pelas revoluções sociais e sexuais no Mundo. A voz da narradora, Nora, descreve como foi emocionante ouvir falar de Woodstock e observa que a vida na Suíça parece realmente monótona. Nora é uma dona de casa “obediente”, casada com Hans, trabalhador de uma serraria. Seus dias consistem em lavar roupa, arrumar camas, limpar, cozinhar e cuidar do marido e de seus dois filhos. No início, as cenas parecem uma “inocente” publicidade de margarina, quase uma romantização de uma (in)aceitável e (i)moral servidão rotineira.


A dona de casa na Suíça era vista como elemento-chave de uma sociedade modelo. Baseados na crença de que as mulheres nasciam para uma vida não política, opositores do sufrágio universal produziam cartazes mostrando crianças negligenciadas caindo de seus berços e chupetas infestadas de insetos. A sociedade patriarcal suíça temia que ao permitir as mulheres na política, elas esqueceriam seus “deveres domésticos naturais”. A propaganda anti-sufrágio feminino, por muito tempo, vigorou antes de se tornar uma vergonha internacional.


foto (da esquerda para a direita): “Não ao sufrágio feminino!”, “Mamãe faz política! Não ao voto das mulheres”, “Não ao direito de voto feminino! Mãe, quando você volta para a casa?”


Nora, lê uma cópia da Lei de Casamento na Suíça, para ter certeza de que seu marido realmente diz a verdade quando insiste que ela não pode trabalhar sem sua permissão. Ele fala: "Não quero que meus filhos comam ravióli em lata. Vou engravidar você novamente para não ficar entediada”. Surpreenda-se. Na Suíça, por lei, e até 1976, o marido podia impedir sua esposa de trabalhar. O emprego da mulher não era um direito, e sim um privilégio concedido pelo homem.


O antagonista da trama também é mulher, a Sra. Wipf, que está convencida de que a igualdade entre sexos "é contra a ordem divina". O ritmo lento dos alpes não impede a Nora de sentir como se estivesse ficado para trás, perdida no tempo. Em vilarejos tão tranquilos e pacatos, ninguém quer fazer barulho. Mas os sussurros da libertação são levados pelo vento. Foram os líderes políticos e religiosos na Suíça que citaram a “Ordem Divina” como a razão pela qual as mulheres ainda não tinham o direito de votar até 1970. Cada detalhe mundano da existência de Nora se torna evidência de sua opressão. Não parece normal que seus filhos esperem que ela limpe a mesa todas as noites. Não parece justo que seu marido possa, dentro da própria lei suíça, proibi-la de conseguir um emprego.


De maneira gradual e não intencional, Nora torna-se a voz de seu vilarejo. A solidariedade se desenvolve entre as mulheres, tornando seu propósito tão evocativo quanto os belos campos bucólicos que as isolam do resto do mundo. Por que demorou tanto tempo para os suíços? O exemplo de democracia direta pode ter sido um tiro no pé. Enquanto, em outros países europeus, o sufrágio feminino havia sido introduzido por parlamentares eleitos, a democracia suíça permitia com que fossem os homens que decidissem pelo voto se as mulheres podiam ser eleitoras ou não. Seria isso uma desculpa?


Um movimento feminista muito bem organizado tentou durante 100 anos conseguir o voto das mulheres no país. Um referendo anterior sobre o sufrágio feminino, realizado em 1 de fevereiro de 1959, foi rejeitado pela maioria (67%) dos homens suíços. Em 1969, as mulheres suíças de todas as gerações marcharam sobre a capital Berna, onde exigiram seus direitos de participação. No ano anterior, o governo havia assinado a Convenção Europeia de Direitos Humanos, mas com uma absurda cláusula para excluir os direitos políticos das mulheres. A Suíça com reputação de rica, bem educada e progressista, se revelou conservadora. O filme deixa claro que as lutas pelos direitos civis é intimamente pessoal. A opressão atravessa o corpo e a mudança social também.


foto: divulgação


Foi só em 7 de fevereiro de 1971, que a maioria dos eleitores – homens – de todo o país “concordaram” que as mulheres deveriam ser autorizadas a votar nas eleições federais. Isso aconteceu 78 anos após a Nova Zelândia, 53 anos após a Alemanha, 34 após o Brasil. Entretanto, não significa que todos os problemas das mulheres suíças foram subitamente resolvidos. A violência doméstica no país só foi criminalizada nos anos 1990. Enquanto muitos de nós estávamos nascendo, nesta mesma década, o último cantão do país dava às mulheres o direito de voto em questões locais, bem como em questões federais. Repito, 1990.


Divinas Mulheres ilustra como a pressão social pode influenciar o processo político. O silêncio coletivo é gritante, seja de mulheres relutantes em lutar publicamente por seus direitos ou de homens com receio de concordar com suas esposas por medo de parecerem fracos diante dos colegas de trabalho. É muito seguro contar histórias sobre as opressões do passado para nos vangloriarmos de o quão longe chegamos. Ao mesmo tempo, abordar um direito que a sociedade contemporânea toma como legítimo pode ser uma forma de chamar a atenção para os erros que continuam atuais. Divinas Mulheres é um filme sobre pessoas normais exigindo direitos normais, estabelecendo uma voz igualitária. A única ordem divina é a do respeito.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).


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