28 de out de 2020
Filme mauritano "Timbuktu" oferece humanismo em resposta à intolerância extremista no Mali.
"Informações importantes! Informações importantes!", ecoa o alto-falante pelo seco ar da cidade no deserto. "É proibido fumar, é proibido fumar!". Esse é o anúncio dos jihadistas recém-chegados à cidade de Timbuktu, no Mali, palco do filme de mesmo nome do diretor mauritano Abderrahmane Sissako. O aviso dos fundamentalistas prepara o povo da cidade e–os espectadores–para uma tragédia surreal baseada eventos reais.
Em 2004, um relatório da ONG Freedom House classificou o Mali como um país "livre" entre as 47 nações de maioria muçulmana. Assim como a cidade de Timbuktu, todo o território malinês cultivou tolerância religiosa e manteve uma democracia secular ao longo da história. A região presenciou, até mesmo, uma candidata feminista à prefeitura de Timbuktu, e o próprio ex-presidente da nação subsaariana, Amadou Toumani Touré, já deixou claro que "O Estado nunca se envolveu como assuntos de religião, o que permitiu a existência de um país estável e pacífico." Esse é o pano de fundo de“Timbuktu”, um filme que toma de assalto, e surpreende, a própria realidade histórica da região.
Em julho de 2012, quando a maior parte do mundo voltava o olhar para os Jogos Olímpicos de Londres, um homem e uma mulher foram raptados em Aguelhok, norte do Mali. Aprendidos pelo grupo islâmico Ansar Dine ("Defensores da Fé"), o casal (pais de dois filhos), foi enterrado até o pescoço e apedrejado até a morte. Por que sofreram tal castigo? Nunca foram casados perante os olhos de Deus. No começo de 2013, o diretor Sissako começou a trabalhar em um longa que denunciasse a tomada da cidade pelos jihadistas. A ideia era filmar em Timbuktu, mas durante os meses que seguiram, o grupo fundamentalista Ansar Dine havia avançado pelo Mali. Pouco antes de começar as filmagens, houve um ataque-bomba próximo ao aeroporto. A produção do filme, então, se deslocou para a Mauritânia com o exército local protegendo o elenco e a equipe de filmagem em Walata, e em outras cidades mauritanas.
“Timbuktu”, portanto, foi filmado na Mauritânia, mas trata o regime islamista imposto à cidade malinesa por militantes fundamentalistas. O roteiro é intenso, assim como as imagens do filme. O longa havia sido planejado para ser um documentário, mas Sissako declarou que isso seria impossível enquanto a maioria dos jihadistas estivesse à solta. Não se poderia fazer um documentário no qual as pessoas não têm liberdade para falar, e o maior risco seria fazer um filme para os próprios jihadistas. Afinal, são eles os únicos detentores de liberdade.
“Timbuktu” tem atraído os olhos da imprensa internacional desde a sua estreia, em 2014, no Festival de Cannes. O filme mereceu uma indicação ao Oscar e conquistou sete prêmios César (equivalente francês ao Oscar), incluindo o de Melhor Filme e de Melhor Diretor. O cineasta Sissako está consciente de que a jihad moderna é uma ávida realizadora de filmes e, ele mesmo, oferece humanismo e graça em resposta à selvageria. O cineasta, que nasceu na Mauritânia, e cujos filmes foram montados principalmente no Mali, examina as diversidades deste absurdo com um toque brutal de calma. A sequência de abertura, com uma gazela fugindo e estátuas históricas sendo destruídas por tiros de extremistas, mostra como a natureza, a tradição e a arte estão em risco constante na mãos dos que acreditam ser possível apagar o passado com "superioridade".
Os habitantes de Timbuktu são poliglotas, multiétnicos e observam seus prazeres diários e liberdade serem reduzidos por estranhos de língua francesa, árabe e inglesa, conhecedores de um Islã supostamente "melhor". Os guerreiros de Alá são indiferentes aos costumes locais e ignoram muitas das línguas faladas pelos residentes de Timbuktu, um antigo centro comercial conhecido por seu cosmopolitismo de origem bambara, songhay e tamasheq.
Sissako faz um retrato perfeito da hipocrisia dos jihadistas. Discutem sobre seus times de futebol favoritos enquanto proíbem o futebol; também proíbem fumar, mas fazem pausas para acender um cigarro. Os vícios dos fundamentalistas são mais fortes do que os princípios de sua ideologia. O som dos tiros também rege um novo ritmo, enquanto a música vai para a clandestinidade.
A cantora malinesa Fatoumata Diawara empresta sua voz e atuação ao filme, mostrando como pequenos atos de resistência compõem a forma como a população de Timbuktu tenta sobreviver às rápidas mudanças que acontecem em sua cidade. Membros da Polícia Islâmica invadem sua casa e uma das moças que canta é publicamente chicoteada pelo crime. Todos acabam em tribunais improvisados supervisionados por extremistas, que nem sequer são originários da região ou falam a língua local. Os jovens jogam futebol com uma bola invisível. Tomam dribles, passam e roubam a bola, comemoram os gols em um balé hipotético de jogos apenas sonhados. Imagens poéticas, silêncio assustador.
Sissako é, atualmente, um dos diretores cinematográficos mais respeitados da África. Ele deixa bem claro que as questões de causa e efeito são complexas e nunca devem ser respondidas de maneira simplista. Embora enfrentando a intolerância extremista e, às vezes, a injustiça assassina, Sissako evita uma caracterização superficial. Até mesmo os jihadistas são retratados como inteligentes e preparados, até certo ponto, para escutar. É a ideologia e a falta de consciência do sofrimento humano que se interpõem no caminho.
"Timbuktu" retrata o belo e o brutal, não da cidade tida com o depósito do saber, das mesquitas de barro e dos manuscritos antigos, mas como um lugar sombrio e de medo. O filme mapeia uma região oprimida por meio do que poderíamos chamar de "topografia emocional". A cidade antiga, com suas estreitas ruas de areia e modestos edifícios de arenito, é um labirinto físico e político. São muitas as pessoas que criticam o cinema africano por não abordar algo artístico ou de criatividade desatrelado ao passado colonial, ou de mensagens sociopolíticas. É preciso lembrar que as regras impostas pelo grupo islamista Ansar Dime parecem absurdas, e não apenas para os frequentadores de cinema. Este é, também, o sentimento dos residentes de Timbuktu.
Sissako faz no seu filme o que as artes devem fazer: não se limita a entreter, ensina e provoca reflexão.